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A Mulher de Apocalipse 12 é Maria?

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INTRODUÇÃO

O Livro do Apocalipse foi escrito por João (Ap 1,1) durante o seu exílio na na Ilha de Patmos (Ap 1,9) por volta de 95 d.C. sob o Reinado de Domiciniano. Ainda que a identidade deste João seja alvo de debate acadêmico, os Padres do século II (especificamente, Justino, Irineu, Melito, Clemente de Alexandria e o Cânone Muratori) atribuíram a obra ao apóstolo João. Utilizando-se de uma linguagem simbólica, o objetivo da obra era denunciar os abusos do Império Romano e sua queda, além de revelar aos cristãos o que aconteceria no fim dos tempos.

Entre as diversas imagens apocalípticas, destaca-se a figura da «Mulher revestida de Sol» em Apocalipse 12. A identidade desta Mulher é um assunto muito polêmico entre católicos e protestantes. Tal passagem, se interpretada em um sentido mariano, dá suporte bíblico a doutrinas católicas importantes como a realeza de Maria (Ap 12,1), sua assunção (Ap 12,14), sua imaculada conceição (Ap 12,15), e, por fim, sua maternidade espiritual universal (Ap 12,17). Sendo esta Mulher a Virgem Maria, toda a mariologia protestante torna-se insustentável diante da própria Bíblia.

O capítulo 12 do Livro de Apocalipse trata de quatro personagens principais que travam uma batalha. O capítulo inteiro centra-se no ódio entre a Mulher e o Dragão que a persegue, respondendo à primeira profecia bíblica (chamado Protoevangelho): «Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela.» (Gênesis 3:15). Daí, vemos a Mulher e seus descendentes guerreando contra o diabo e seus descendentes.

Mas, será que, de fato, este texto se aplica à Maria?

ANALISANDO APOCALIPSE

CAPÍTULO 11

Versículo 19: «Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e forte saraiva.»

O prólogo do texto de Apocalipse 12 se refere ao reaparecimento da arca da aliança. O Livro de Jeremias, no entanto, exclui a possibilidade de se referir à Antiga Arca da Aliança, que nunca mais seria visitada nem lembrada: «Convertei-vos, ó filhos rebeldes, diz o Senhor; pois eu vos desposei; e vos tomarei, a um de uma cidade, e a dois de uma família; e vos levarei a Sião. E dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, os quais vos apascentarão com ciência e com inteligência. E sucederá que, quando vos multiplicardes e frutificardes na terra, naqueles dias, diz o Senhor, nunca mais se dirá: A arca da aliança do Senhor, nem lhes virá ao coração; nem dela se lembrarão, nem a visitarão; nem se fará outra. Naquele tempo chamarão a Jerusalém o trono do Senhor, e todas as nações se ajuntarão a ela, em nome do Senhor, em Jerusalém; e nunca mais andarão segundo o propósito do seu coração maligno.» (Jeremias 3:14-17).

Que arca é esta que aparece no Céu então? Um versículo depois, João a descreve como  «uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. Estava grávida (…) E deu à luz um filho homem que há de reger todas as nações com vara de ferro» (Apocalipse 12,1). João se refere à arca como uma Mulher, a quem atribui a maternidade messiânica.

Mas qual o sentido de tudo isso? Em Israel, o objeto mais sagrado era a arca da aliança. Ela continha o maná, a vara de Araão, e a Palavra de Deus em pedra (cf. Hebreus 9,4). João, no entanto, não se refere a esta arca. Ele fala de uma Mulher. Esta Mulher carrega em seu ventre o pão que desceu do Céu (Jo 6,51), o verdadeiro Sumo Sacerdote de Deus (Hebreus 5,1-10) e a Palavra de Deus em carne (cf. João 1,14): Fala-se de uma Nova Arca da Aliança.

Não se pode negar que um paralelo, no entanto, pode ser facilmente estabelecido entre Maria e a Arca da Aliança a partir do primeiro capítulo do Evangelho de Lucas e o sexto capítulo do Segundo Livro de Samuel.

De acordo com Samuel, a Arca da Aliança viajou para a casa de Obede, em Edom, ficando três meses com ele (cf. 2 Sm 6,11). Lá, diante da arca, Davi «saltou e dançou» (2 Sm 6,16). No início do capítulo, Davi chega a exclamar: «Como entrará a arca do Senhor em minha casa?» (cf. 2 Sm 6:9). Após sua estadia na casa de Obede, sua casa foi abençoada, e a arca retornou ao seu lugar (cf. 2 Sm 6:12).

De acordo com o Evangelho de Lucas, Maria viajou para a casa de Isabel e Zacarias, onde passou três meses com eles (cf. Lc 1,56). Lá, ao ouvir a saudação de Maria, João Batista «saltou» no ventre de sua mãe (cf. Lc 1,41). Esta, então, exclamou em alta voz: «Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor?» (Lucas 1:43). Após sua estadia na casa de Zacarias, sua casa é abençoada e Maria retorna à Nazaré (cf. Lc 1:56).

Em resumo, Lucas em seu Evangelho utiliza-se da tipologia bíblica para descrever a Virgem Maria como a Nova Arca da Aliança. E é neste mesmo sentido que João, no texto de Apocalipse 11,19, refere-se ao reaparecimento da arca. Dessa forma, concluímos de acordo com São Pascásio Radberto e toda a Tradição da Igreja que «O templo de Deus foi aberto e a Arca da Aliança foi vista (cf. Ap 11,19). Esta certamente não era a arca feita por Moisés, mas é a Bendita Virgem, cujo [título] já foi transferido para ela.» (São Pascásio Radberto, PL 96,250A).

CAPÍTULO 12

Versículo 1: «Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas

Finalmente chega-se ao tão disputado versículo no qual a Arca do versículo anterior se revela. Trata-se, de acordo com João, de uma «Mulher». Ela está grávida e dará à luz ao Messias (cf. Ap 12,5). Note que este parto se trata de um «grande sinal». Este é o mesmo «sinal» que Isaías narrou para Acaz sobre o nascimento de Jesus (cf. Is 7,14). O texto que sucede ao primeiro versículo de Apocalipse 12 obviamente não segue uma cronologia exata (já que no meio do texto cita a Batalha de Lúcifer contra os anjos que ocorreu no início da criação), mas tem apenas o intuito de demonstrar a identidade e a história desta Mulher, marcada pela inimizade para com o demônio. Tradicionalmente, a Igreja aplica este primeiro versículo à própria Mãe de Deus em todo o esplendor após sua santa assunção.

Como em Apocalipse algumas cidades são personificadas sob figuras femininas (ex: a “Noiva” de Ap 20 e a “Babilônia” de Ap 18), alguns teólogos tem sugerido que a “Mulher” descrita nesta passagem seja apenas a representação de uma cidade ou de um povo, excluindo-se qualquer possibilidade de uma interpretação mariana do texto. A partir disso surgem duas interpretações entre eles (comuns em especial no meio protestante) para a identidade da Mulher do Apocalipse 12: alguns consideram que se trata da Jerusalém Celeste (e logo, tratar-se-ia explicitamente da Igreja), enquanto que outros justificando-se no texto de Gênesis 37, afirmam que se trata da Jerusalém Terrena (e logo, tratar-se-ia explicitamente de Israel), onde a Lua representaria Raquel, o Sol, Jacó, e as estrelas as doze tribos de Israel.

O problema com esta interpretação é que Apocalipse nomeia a «Nova Jerusalém» (isto é, a Igreja) sob os títulos de «Noiva» (21,9) e «Esposa» (20,22) do Cordeiro, e não de «Mulher» ou de sua «Mãe» (atribuindo-lhe no caso a maternidade messiânica do vs. 5). O mesmo pode ser concluído a respeito da «Jerusalém Terrena» (isto é, do Reino de Israel), já que esta é chamada por João de «Sodoma» ou «Egito» (cf. Ap 11,8), mas nunca de «Mulher». Também não pode ser dito que a Mulher do texto de Apocalipse é simplesmente o conjunto de todos os crentes em Cristo pois o próprio texto apocalíptico deixa claro que o povo de Deus não é a Mulher em si, mas a sua descendência (cf. Ap 12,17).

Como o texto de Apocalipse 12 faz uma clara alusão à profecia de Gênesis 3:15, a «Mulher» de Apocalipse 12 também deve ser entendida como o cumprimento da «Mulher» de Gênesis 3,15 (sendo, portanto, à uma pessoa física). Ora, o contexto da maternidade messiânica exclui Eva desta interpretação, logo, resta-nos a figura da «Nova Eva», isto é, da Virgem Maria. Em primeiro lugar, portanto, o texto Apocalíptico fala a respeito de Maria. É por isso que João frequentemente a chama em seu Evangelho pelo título de «Mulher» (cf. Jo 2, 4; 19,26).

O próprio texto de Gênesis 3:15 não pode ser interpretado como uma referência literal à Eva pois (diferente do restante do capítulo) trata-se de um texto profético: Deus afirma que irá impor «inimizade» entre a Mulher e o demônio. Ora, Gênesis afirma apenas que Eva concebeu «amizade» com a Serpente, sendo causa de nossa ruína (cf. Gn 3,6). Após esta primeira amizade (pecado original), entende-se que Eva amigou-se mais vezes com a Serpente toda vez que caía em pecado. O texto não pode se referir, portanto, à Eva, mas justamente à sua antítese: Refere-se à «Nova Eva» (pregada desde os primórdios por Justino e Irineu), a Mãe do Messias, a Virgem Maria. É o seu filho aquele que esmagará a cabeça de Satanás.

A mesma interpretação de Gn 3,15 é feita pelo Pe. Eric May na famosa obra “Mariology”, escrita por uma Comissão internacional de especialistas sob a presidência do Pe. Juniper B. Carol: «Era a inimizade completa e perpétua prevista entre a Mulher e Satanás. A palavra hebraica para “inimizade”, ‘êybah, significa apenas isso, como podemos extrair de seu uso em outras partes do Antigo Testamento (por exemplo, Num 35:21 onde significa uma inimizade pessoal que leva ao assassinato, Ezequiel 25: 15, onde significa uma inimizade destrutiva nacional), bem como da própria natureza da passagem. Que mulher da história se qualifica para tal inimizade com o diabo, se não a Mãe Imaculada de Jesus, que nunca por um momento caiu sob o poder de Satanás? Eva certamente não. Sabemos como a Escritura fala dela. Ela foi a que trouxe o pecado para o mundo (Eclo 25:33, 2 Coríntios 11: 3, 1 Tim. 2:14). Nunca foi dito que ela era “cheia de graça”. E mesmo que Eva tenha se arrependido do pecado original, é realmente razoável supor que nunca mais por um instante ela cedeu à tentação até seu perder seu fôlego? Novamente, nos lembramos que o Papa Pio IX teve essa inimizade perfeita em mente ao definir o dogma da Imaculada Conceição.» (PE. ERIC MAY, O.F.M.Cap, Mariology (Juniper), pp.  59).

Isso não significa, no entanto, que a Igreja não aplique também o texto de Apocalipse 12 para a Igreja ou para Israel. Como a teologia católica ensina que Maria é a Ecclesia Typus (isto é, o “tipo” perfeitíssimo da Igreja), Maria a representa em todos os seus aspectos através de seu agir. Nesse sentido, tudo o que se aplica a Maria se aplica também à Igreja e, portanto, qualquer texto mariano (inclusive o do Apocalipse) é também um texto eclesiológico. Da mesma forma, a Igreja também aplica à Maria o título de “Filha de Sião” (devido ao paralelo entre Sofonias 3 e Lucas 1), o que a torna um tipo também de Israel, personificando-a através do seu agir. Novamente, todo texto mariano se aplica também à figura do povo eleito de Deus. Dessa forma, as três interpretações são válidas ao texto, ainda que primariamente, João se refira à Maria.

Todos os grandes teólogos católicos concordam que o texto se refira à, ao menos, a Igreja e à Maria. De acordo com as palavras do próprio Papa Bento XVI: «“Depois apareceu um grande sinal do Céu: uma mulher revestida de sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça” (Ap 12, 1). Qual é o significado desta imagem? Ela representa ao mesmo tempo Nossa Senhora e a Igreja. Antes de tudo a «mulher» do Apocalipse é Maria. (…) além de representar Nossa Senhora, este sinal encarna a Igreja, a comunidade cristã de todos os tempos.» (Discurso do Papa Bento XVI na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, Quinta-Feira, 8 de Dezembro de 2011).

É interessante notar os símbolos que rodeiam a Mulher Apocalíptica: ela está «revestida de Sol», possui «a lua debaixo dos seus pés», e na cabeça porta «uma coroa de doze estrelas» (cf. vs. 1).   A partir deste versículo alguns sugerem a interpretação de Israel como interpretação primária (ou até mesmo exclusiva) sobre o texto de Apocalipse 12, já que o sol, a lua e doze estrelas representavam no Antigo Testamento, o Reino de Israel (cf. Gênesis 37,9).

Uma vez visto que João está fazendo alusão à «Nova Eva» presente no texto de Gênesis 3,15 (isto é, à Maria), entende-se que na realidade, o autor atribui elementos típicos de Israel à figura da Virgem Maria com o intuito de apresentá-la como a «Nova Filha de Sião», isto é, a representante perfeita do povo de Deus (da mesma forma que o fez Lucas através de seu paralelo com Sofonias 3).

Cabe-nos agora analisar cada ornamento que a Mulher do texto utiliza: Note em primeiro lugar que a Mulher está «revestida do sol» (cf. Ap 12,1). Isso se deve ao fato de que «os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai » (Mateus 13:43) após a ressurreição da carne. Paulo utiliza uma linguagem semelhante para dizer que na ressurreição, Deus «transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura» (Filipenses 3:20-21). Este «Sol» representa o próprio Deus (cf. 1 Jo 1,5; Lc 1,78).  O «resplandecer» dos corpos dos santos refere-se à «graça divina» derramada sobre eles ao serem ressuscitados. Note que Maria não apenas «resplandece» como o Sol, mas ela está «revestida» dele. Isso se deve ao fato de que Maria possui a plenitude da graça divina (cf. Lc 1,28), sendo seu corpo glorioso muito superior ao nosso. Dessa forma, João nos revela que o corpo de Maria já está glorificado nos Céus, de uma fora extraordinária: revestido de luz.

Em consonância com este versículo, temos a Sagrada Tradição, na qual São Germano, Patriarca de Constantinopla, contempla o corpo glorificado de Maria: «Tu és bela (Ct 2,13) e teu corpo virginal é totalmente santo, casto, morada de Deus. Por este motivo está isento da dissolução em pó. Como corpo humano, foi transformado até a vida excelsa da incorruptibilidade. Está vivo, é superglorioso, cheio de vida e imortal.» (São Germano de Constantinopla, Hom. in. dorm. I; PG 98,345).

Percebe-se também que a Mulher está com «a lua debaixo dos seus pés». Ninguém pode explicar melhor tal característica a não ser o próprio Papa Bento XVI: «Esta mulher tem debaixo dos pés a lua, símbolo da morte e da mortalidade. Com efeito, Maria está plenamente associada à vitória de Jesus Cristo, seu Filho, sobre o pecado e sobre a morte; está livre de qualquer sombra de morte e totalmente repleta de vida. Pois a morte já não tem poder algum sobre Jesus ressuscitado (cf. Rm 6, 9), também por uma graça e um privilégio singulares de Deus Omnipotente, Maria deixou-a atrás de si, superou-a. E isto manifesta-se nos dois grandes mistérios da sua existência: no início, o facto de ter sido concebida sem pecado original, que é o mistério que hoje celebramos; e no fim, o facto de ter sido elevada ao Céu em corpo e alma, na glória de Deus. Mas também toda a sua vida terrena foi uma vitória sobre a morte, porque se dedicou totalmente ao serviço de Deus, na oblação total de si a Ele e ao próximo. Por isso, Maria é em si mesma um hino à vida: é a criatura na qual já se realizou a palavra de Cristo: «Vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).» (Discurso do Papa Bento XVI na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, Quinta-Feira, 8 de Dezembro de 2011).

A última característica da Mulher de Apocalipse é que sob sua cabeça há «uma coroa de doze estrelas» (cf. vs. 1). O número 12 representam a totalidade do povo de Deus: No Antigo Testamento, representavam as doze tribos que compunham Israel; No Novo Testamento representam os 12 apóstolos que governam a Igreja na Terra. A coroa refere-se à um símbolo de autoridade. A Mulher exerce uma autoridade real sobre todo o povo de Deus.

A Tradição católica costuma chamar Maria de Gebirah (isto é, a Rainha-Mãe do Céu e da Terra). Isso se deve ao fato de que na cultura judaica, um rei Davi teria sua mãe como Rainha em vez de sua esposa, porque ele raramente tinha uma esposa, mas muitas mulheres. Partilhar o poder com muitas esposas seria difícil demais, mas ele só tinha uma mãe e a ela era dado o título de Rainha. Quase toda vez que um novo rei é introduzido em 1 e 2 Reis, a mãe do rei é mencionada. Ela era um membro da corte real, usava uma coroa, sentava-se em um trono, e compartilhava o reinado do rei (cf. 2 Reis 24:12, 15; Jer. 13: 18-20). Ela atuou como conselheiro para seu filho (Prov 31.), um defensor do povo, e como uma intercessora para os cidadãos do reino (1Rs 2: 17-20). Uma vez que Jesus é um Rei com base na ordem de David (Lc 1,32), faz sentido que sua mãe seja chamada de rainha.

No Antigo Testamento há um texto considerado messiânico pelo autor da Epístola aos Hebreus (cf. Hb 1,9), que se refere ao casamento de Salomão com uma de suas amadas (Salmo 44(45)). Neste casamento há a presença ilustre da mãe do Rei, Betsabéia, que assiste o casamento no seu lugar usual: a direita de seu filho (cf. 1 Rs 2,19; Sl 45,9). Nesta passagem, Betsabéia é chamada de «Rainha» (Sl 45,9).  Já que a Epístola aos Hebreus considera o noivo em um sentido profético como se referindo à Cristo, entende-se que a Igreja é a noiva e que a sua Rainha-Mãe, só pode ser, neste caso, Maria. Tudo isso contribui para uma interpretação plena do texto apocalíptico, que apresenta a Mãe do Messias coroada nos Céus.

O último texto que faz referência com Apocalipse 12 é Cânticos dos Cânticos 6,9-10. O texto de Cânticos diz: «Há sessenta rainhas, oitenta concubinas, e inumeráveis jovens mulheres; uma, porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita; ela é a única de sua mãe, a predileta daquela que a deu à luz. Ao vê-la, as donzelas proclamam-na bem-aventurada, rainhas e concubinas a louvam. Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol, temível como um exército em ordem de batalha?» (Cânticos 6:8-10). A amada de Cântico dos Cânticos é também utilizada na teologia católica como uma prefiguração da Santíssima Virgem, que os padres da Igreja como Prudêncio chamavam de a «Esposa do Espírito Santo». São várias passagens que são aplicadas profeticamente à figura da Mãe de Deus: «as donzelas proclamam-na bem-aventurada, rainhas e concubinas a louvam.» (Cânticos 6:9); um símbolo da mãe do Messias; que segundo Lucas, seria proclamada «bem-aventurada» perante todas as gerações (Lucas 1,48); é dito que ela possui lábios de «leite e mel» (Ct 4,11), e Cristo seria nutrido com «manteiga e mel» (Is 7,15); ela é chamada de imaculada (Ct 4,7; 5,2) e Maria é imaculada (Gn 3,15); ela é a «Mais bela das mulheres» (Ct 1,8) e Maria é a «Bendita entre as mulheres» (Lc 1,42). Por esse motivo muitos padres da Igreja viram nesta amada a imagem de Maria: Ambrósio de Milão, Jerônimo de Estridão, Epifânio de Salmia, Apônio, Santo Isidoro, Germano de Constantinopla, João Damasceno(…) (cf. Lista extraída da obra de Michael O’Carroll; Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, página 327). João é apenas o primeiro de muitos a atribuir diretamente a figura da Mulher de Cânticos à figura da mãe de Jesus.

Versículo 2: «Estava grávida e gritava de doressentindo as angústias de dar à luz. »

Aqui surge um problema: A Tradição é unânime em afirmar que Maria se viu isenta das dores de parto. Esta «angústia» que Apocalipse fala, deve ser interpretada em um sentido alegórico: No Novo Testamento, Paulo utiliza o termo «dores de parto» ( do grego ὠδίνουσα-ōdinousa) como uma metáfora para o sofrimento espiritual, para o sofrimento em geral, ou para o desejo do mundo como ele aguarda para o cumprimento final (cf. Gl 4:19; Rm 8:22). A gravidez da Virgem até seu santo parto foi repleto de angústia, enfrentando a perseguição de Herodes, a dúvida de José, o recenseamento, a falta de lugar para ficar…

Em síntese: O versículo 2 de Apocalipse 12 apresenta toda essa aflição resumidamente. Trata-se, portanto, de todo o sofrimento espiritual que assolou Maria antes de dar a luz. No século VI, Ecumênio explica:

«E assim, de acordo com as regras da linguagem figurativa, ele chama esse desânimo e tristeza de “gritar” e “angústia”. E isso não é incomum. Ainda para o bem-aventurado Moisés, quando ele estava conversando espiritualmente com Deus e perdeu o coração – pois viu Israel no deserto cercado pelo mar e pelo inimigo – Deus disse: “Por que você está chorando para mim? (Êxodo 14:15)”. Assim também aqui, a visão chama a disposição conturbada da Virgem em sua mente e coração à “gritar”.» (Ecumênio, Comentário no Apocalipse, capítulo 6,19,8).

Há também alguns Padres que utilizam esta passagem para explicar as terríveis aflições espirituais sofridas por Maria no Calvário. Um deles é o Papa Pio X em sua encíclica Ad Diem Illum.

Versículo 3- 4: «Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com sua cauda uma terça parte das estrelas do céu, e as atirou à terra. Esse Dragão deteve-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de que, quando ela desse à luz, lhe devorasse o filho

João está identificando os personagens que travam a Batalha. Nos versículos 7-12, João, com o intuito de especificar ainda mais a identidade do Dragão que persegue a Mulher, chama-o de: «o grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro». Evoca-se novamente a profecia de Gênesis 3,15: trata-se da mesma Serpente que enganou Eva no jardim. Seu intuito é destruir o Filho da Mulher.

Sabe-se, no entanto, que Satanás utiliza-se de pessoas para conseguir suas vontades. Neste caso, utiliza-se de Herodes. A «perseguição» que o texto fala se refere justamente à perseguição promovida por ele com o intuito de destruir o Messias «Herodes vai procurar o menino para o matar» (Mateus 2,13).

Versículo 5: «Ela deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro. Mas seu Filho foiarrebatado para junto de Deus e do seu trono

A criança deste versículo é claramente Jesus Cristo. João, neste versículo, retoma a linguagem do Livro dos Salmos: «Erguem-se, juntos, os reis da terra, e os príncipes se unem para conspirar contra o Senhor e contra seu Cristo. (…) Aquele, porém, que mora nos céus, se ri, o Senhor os reduz ao ridículo. Dirigindo-se a eles em cólera, ele os aterra com o seu furor: Sou eu, diz, quem me sagrei um rei em Sião, minha montanha santa. Vou publicar o decreto do Senhor. Disse-me o Senhor: Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede-me; dar-te-ei por herança todas as nações; tu possuirás os confins do mundo. Tu as governarás com cetro de ferro, tu as pulverizarás como um vaso de argila.» (Salmos 2:2-9).

Como a linguagem simbólica de Apocalipse não segue uma linha cronológica exata, logo após a descrição de seu parto, a criança é «arrebatada» para junto de Deus e de seu trono. Trata-se claramente da Ascenção de Nosso Senhor Jesus Cristo que «Enquanto os abençoava, separou-se deles e foi arrebatado ao céu.» (Lucas 24:51). É a partir deste versículo que a interpretação mariana se fundamenta já que Maria é quem deu à luz a Jesus.

Versículo 6: «A Mulher fugiu então para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um retiro para aí ser sustentada por mil duzentos e sessenta dias

Apocalipse 12 apresenta duas fugas da Mulher para «desertos» (a primeira no vs. 6 e a última no vs. 14). A linguagem «deserto» evoca ao Antigo Testamento como um lugar seguro, protegido pela presença divina (cf. Ex 3,18; 4,27; 7,16). Ora, a interpretação mariana facilmente vê este deserto como o Egito, terra onde José e Maria fugiram para proteger a criança (cf. Mt 2,14-16).

Sobre a questão dos 1260 dias é interessante notar que, diferentemente do versículo 14, o tempo é contado em «dias» (do grego ἡμέρας- hēmeras) no vs. 6. João nos dá uma data cronológica: tratam-se de três anos e meio (o que bate com a tradição católica do período em que José e Maria ficaram no deserto até a morte do Rei Herodes). No vs. 14, no entanto, João falará em «tempos» (καιροὺς- kairous), mais especificamente em «tempos oportunos». Este é o tempo divino, que será visto mais adiante.

Versículo 7-12: «Houve uma batalha no céu. Miguel e seus anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no céu para eles. Foi então precipitado o grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Foi precipitado na terra, e com ele os seus anjos. Eu ouvi no céu uma voz forte que dizia: Agora chegou a salvação, o poder e a realeza de nosso Deus, assim como a autoridade de seu Cristo, porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que os acusava, dia e noite, diante do nosso Deus. Mas estes venceram-no por causa do sangue do Cordeiro e de seu eloqüente testemunho. Desprezaram a vida até aceitar a morte. Por isso alegrai-vos, ó céus, e todos que aí habitais. Mas, ó terra e mar, cuidado! Porque o Demônio desceu para vós, cheio de grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta.»

Não se pode exigir uma sucessão cronológica exata nos versículos de Apocalipse 12. Jesus nasceu muito tempo depois da «batalha no Céu». O intuito de João ao retomar a expulsão do Dragão e seus anjos do Céu é justamente identifica-lo como «a primitiva serpente» para que possamos enquadrá-lo no cenário da inimizade de Gênesis 3,15.

Versículo 13- 14: «O Dragão, vendo que fora precipitado na terra, perseguiu a Mulher que dera à luz o Menino. Mas à Mulher foram dadas duas asas de grande águia, a fim de voar para o deserto, para o lugar de seu retiro, onde é alimentada por um tempo, dois tempos e a metade de um tempo, fora do alcance da cabeça da Serpente. »

Durante toda a sua vida terrena, o diabo perseguiu de várias formas à mãe de Jesus. No entanto, percebe-se que no versículo 14 esta perseguição chega ao fim: a Mulher recebe de Deus «asas de águia» e «voa» para o deserto. Novamente, entende-se por «deserto», um símbolo para um lugar seguro, protegido pela presença divina (cf. Ex 3,18; 4,27; 7,16). Diferentemente do versículo 6 (isto é, da fuga para o Egito), aqui a Mulher se vê definitivamente «fora do alcance da cabeça da Serpente». Trata-se de um lugar onde Satanás já não pode alcança-la.

Note que o fim da Mulher não é usual, mas ela recebe de Deus asas de águia e «voa» (πέτηται). No tocante às «asas de águia», encontra-se seu significado ainda no Antigo Testamento. Ele se refere ao cuidado que Deus tem em encaminhar-nos para junto Dele (cf. Ex 19,4), pois a águia é a ave que voa mais alto (cf. Ab 1,4; Pr 30,19), seu vôo simboliza a jornada para o Céu (cf. Pr 23,5).

Perceba que este versículo se refere ao destino final da Virgem (já que trata do fim da Batalha com o Dragão). As terminologias «voar», «encontrar o Senhor nos ares», «ir com ele para as núvens», «ser ajuntado pelos ventos» e até mesmo «asas de águia» são linguagens figurativas utilizadas pelos apóstolos para se referir ao arrebatamento corporal. Veja alguns exemplos: «Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor.» (1 Tessalonicenses 4:17) e também «E enviará os seus anjos com grande som de trombeta, e ajuntarão os seus eleitos dos quatro ventosde um extremo do céu ao outro.» (Mateus 24:31). O «vôo» que Apocalipse fala é, portanto, a constatação bíblica da Assunção de Maria aos céus (assim como ocorreu com Henoc e Elias em Gn 5,34 e 2 Rs 2,11, respectivamente).

O tempo em que a Mulher ficará neste retiro já não é mais contado em «dias» (ἡμέρας- hēmeras) como no vs. 6 (que se tratava da fuga ao Egito), mas em «tempos» (καιροὺς- kairous). Este é o tempo kairós, que significa «tempo oportuno» ou «tempo divino». Aqui, João evoca uma linguagem do Profeta Daniel: «os santos serão entregues ao seu poder durante um tempo, tempos e metade de um tempo. Mas realizar-se-á o julgamento e lhe será arrancado seu domínio, para destruí-lo e suprimi-lo definitivamente.» (Daniel 7:25-26). Trata-se, portanto, do tempo em que a Igreja peregrinará na Terra, sendo o sangue dos santos derramado. Quando este tempo acabar, ocorrerá o Juízo Final e a Mulher, finalmente retornará junto do «Senhor com milhares de seus santos» (Judas 1:14).

Versículo 15-16: «A Serpente vomitou contra a Mulher um rio de água, para fazê-la submergir. A terra, porém, acudiu à Mulher, abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara

De acordo com João, no vs. 14 Maria se vê finalmente livre da perseguição do Dragão. O vs. 15, no entanto, retoma a batalha entre ele e a Mulher. Esta retomada se dá no intuito de explicar a origem do furor do Dragão pela Mulher e por sua descendência.

Em Apocalipse podemos observar dois rios: um é o «rio de água viva» que procede do Cordeiro e do Trono Divino (cf. Ap 22,1); o outro, é o «rio que o Dragão vomitara» presente no texto de Apocalipse 12,14-15. O primeiro é fonte de vida, que leva a salvação eterna aos homens. O segundo, é fonte de morte, pois tem o intuito de fazer os homens «submergirem». Este segundo é, sem dúvidas, a primeira «amizade» que o homem contrai com o diabo, chamado de «pecado original» oriundo da desobediência de Adão e Eva que é transmitido a todos no momento de sua conceição.

Apocalipse mostra que o demônio tenta fazer com que a Mãe do Senhor «submergisse» (isto é, tenta ter domínio sobre ela através da transmissão do pecado original), mas a «terra» (simbologia da nossa carne que foi formada do barro da terra, cf. Gn 2,7), obedecendo aos desígnios de Deus (que preparava Maria para conceber Jesus) não permitiu que ocorresse esta transmissão («abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara»). Não contraindo «amizade» com o demônio, a profecia de Gênesis 3,15 é cumprida e surge na Terra a única criatura que obtêm verdadeiramente «inimizade» com Satanás: Esta criatura é, sem dúvidas, a Virgem Maria através de sua Imaculada Concepção.

João conclui o texto dizendo que após não ter conseguido fazer com que a Mulher submergisse «se irritou contra a Mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência» (vs. 17). Esta guerra é travada por todos os cristãos até hoje e será vista mais adiante.

Olhando Maria sob a perspectiva de que ela é a Nova Arca da Aliança (cf. Ap 11,19), São Francisco de Sales associa este texto com Josué 3,11-16, onde a Antiga Arca da Aliança passa pelas águas do Jordão sem ser tocada por ele. A partir disto, São Francisco de Sales, no seu «Tratado do amor de Deus», escreve: «A torrente da iniqüidade original veio lançar as suas ondas impuras sobre a conceição da Virgem Sagrada, com a mesma impetuosidade que sobre a dos demais filhos de Adão; mas chegando ali, as vagas do pecado não passaram além, mas se detiveram, como outrora o Jordão no tempo de Josué, aqui respeitando a arca da aliança a torrente parou; lá em atenção ao Tabernáculo da verdadeira aliança, que é a Virgem Maria, o pecado original se deteve.».

A mesma interpretação é feita pelos Padres Aidan Carr e German Williams na famosa obra “Mariology”, escrita por uma Comissão internacional de especialistas sob a presidência do Pe. Juniper B. Carol:

«O diabo originalmente fez seu esforço para vencer Maria, quando seduziu os primeiros pais, de quem a infecção do pecado passou para a posteridade, e de fato teria engolido Maria, se não fosse por sua preservação especial através da causalidade do Verbo Encarnado. Sua humanidade tomada de Maria e da terra, tornou-se o instrumento que desviou a maré do pecado para que não varresse sua mãe nas águas amargas que flui de uma fonte envenenada. Esta é a interpretação dos versículos 15 e 16 do capítulo 12 do Apocalipse: “E a serpente lançou fora a sua boca depois da mulher, a água como um rio, para que ela fosse levada pelo rio. Ajudou a mulher, e a terra abriu a sua boca, e engoliu o rio que o dragão lançou de sua boca.”

O contexto total do capítulo 12 é, mais do que qualquer outra coisa, uma exaltação da Maternidade espiritual de Maria, mas fornece uma confirmação, bem como uma interpretação da inimizade entre a mulher e a serpente narrada no Protoevangelho contido no Gênesis. Maria foi protegida da queda sob a influência da serpente através do ato redentor de Cristo, tornando-se uma vítima satisfatória para a Humanidade de acordo com a profecia de Isa. 53: 6. A morte piacular do Salvador teve uma eficácia especial para a Mãe do Messias, e é por isso que a serpente, o dragão, nas palavras de Apoc. 12,17: “… estava zangado contra a mulher e foi fazer guerra com o resto de sua semente…”.

Esta passagem no último dos livros inspirados é, portanto, um argumento clássico, talvez de menor peso, para confirmar a imunidade de Maria do pecado original. É o cumprimento da promessa contida no primeiro dos livros inspirados, para este prometido alívio em favor de uma Mãe de Cristo e de sua semente: a humanidade sagrada, e cada pessoa, a Virgem e seu Filho, que gozavam de liberdade de todos os pecados. Esta conjuntura sem pecado, natural de Cristo devido a Sua divindade, especial para Maria devido à sua humanidade, era um requisito para sua vitória conjunta sobre Satanás por seus sofrimentos.» (PE. AIDAN CARR e PE. GERMAN WILLIAMS, Mariology (Juniper), pp. 343-344).

Versículo 17: «Este, então, se irritou contra a Mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência, aos que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus

Após ter apresentado durante todo o capítulo Maria como a «Nova Eva» (já que é ela que cumpre a profecia de Gênesis 3,15), a atribui outro título próprio de Eva: o título de «Mãe de todos os viventes» (cf. Gn 3,20).

Trata-se do mesmo Apóstolo a quem o Senhor chamou explicitamente (e em um claro contexto espiritual) de «Filho» de sua Mãe (cf. Jo 19,26). Se analisadas em um contexto isolado, as palavras de Cristo na cruz não conseguem expressar o seu total significado. Deve-se olhar a passagem sob a perspectiva do princípio da recapitulação, na qual «tudo se fez novo» (cf. 2 Cor 5,17). A partir deste princípio tiramos a seguinte conclusão: Diante do primeiro madeiro (a árvore do conhecimento do bem e do mal), o primeiro Adão concedeu a morte à toda a Humanidade com a ajuda de Eva, que foi considerada «Mãe de todos os viventes» (cf. Gn 3,20). Diante de um segundo madeiro (a cruz), o Novo Adão concedeu a salvação à toda a Humanidade com a ajuda de Maria, a Nova Eva, que é também por ele considerada «Mãe» dos discípulos (cf. Jo 19,26-27).

Em Apocalipse João ratifica que as frases ditas por Jesus na cruz não se referem apenas a ele mas fazem parte do grande paralelo entre Maria e Eva, mãe da Humanidade. A descendência de Maria é todo aquele que guarda a Palavra de Deus. Com uma Mãe vitoriosa, resta a esta descendência batalhar contra a Serpente para poder gozar eternamente do amor de Deus no Paraíso.

PAIS DA IGREJA E A MULHER DE APOCALIPSE 12

Historicamente, o costume eclesiológico de se atribuir o texto de Apocalipse 12, ora à Igreja e ora à Virgem Maria, esteve presente em todos os séculos de Cristianismo. Seu uso era contextual: em períodos de perseguição, a Igreja via sua imagem na Mulher que geme em dores de parto (cf. Ap 12,2), o que explica seu uso comum no século III por três mártires da Igreja: Santo Hipólito de Roma, São Metódio de Olimpo e São Vitorino de Pettau. Já em épocas de heresia, onde a mariologia ortodoxa era atacada, recorria-se à interpretação mariana (em especial, a partir do século V com o advento do nestorianismo) para defender a dignidade da Santíssima Virgem.

Entre os Padres, o primeiro que parece ter recorrido à uma interpretação mariana para fundamentar o destino final da vida de Maria foi Santo Epifânio de Salamia (ainda que não a desse certeza): «Por outro lado, quando o Apocalipse de João diz “E o dragão se apressou contra a mulher que deu à luz a criança do sexo masculino, e havia dado a ela as asas de uma águia, e ela foi levada para o deserto, para que o dragão não possa agarrá-la” (Ap 12, 13- 14), pode ser que esta [profecia] seja cumprida nela. No entanto, eu não afirmo isso com certeza» (Santo Epifânio de Salamia, Panarion 78, n. 10-11).

A primeira identificação explícita, no entanto, foi feita por um discípulo de Santo Agostinho, São Quodvultdeus, ainda no século V: «Nenhum de vocês ignora o fato de que o dragão era o diabo. A mulher significava a Virgem Maria» (São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661). Como os demais Padres, a partir do paralelo Maria-Igreja, Quodvultdeus vê também a figura da Igreja na Mulher do Apocalipse: «A mulher significa Maria, que, sendo Imaculada, trouxe nossa Cabeça Imaculada. Quem mostrou-se também adiante de si mesma a figura da Santa Igreja, já que, como ela permaneceu Virgem trazendo à luz um filho» (São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661).

No mesmo século, o bispo de Ancira, São Theodoto, em uma de suas homilias, professou: «Alegra-te morada Santíssima! Alegra-te, salutar velo espiritual! Alegra-te, Mãe revestida de luz e que dá à luz o Sol que não conhece poente!» (São Theodoto de Ancira, Homilia IV in S. Deiparam et Simeonem III, PG 77,1393). O termo «Mãe revestida de luz» faz clara referência à Mulher de Apocalipse «revestida de Sol» (cf. Ap 12,1).

Na primeira metade do século VI, Ecumênio fez uma interpretação explícita da Mulher revestida de Sol, identificando-a somente com a Virgem Maria. Para ele, não se tratava de uma visão futurista, e sim retrospectiva. A mulher é Maria, e ela está grávida do Sol, que é Cristo (da mesma forma como Theodoto). Em referência ao versículo 2 de Apocalipse 12, cita Isaías 66,7; e afirma que Maria se viu livre das dores de parto. Os gritos, seriam devido às tribulações que a Virgem teve que enfrentar durante à gravidez (em especial, à suspeita de adultério, por parte de José). Sobre o versículo 4, Ecumênio diz que refere-se a perseguição de Herodes, e o versículo 6 à fuga para o Egito. Em nenhum momento Ecumênio atribui a identidade da Mulher do Apocalipse à Igreja, o que fez a estudiosa Hilda Graef pensar que Ecumênio considerava este texto exclusivamente mariano [1]. Isso não quer dizer que a Igreja do século VI não interpretava o texto de Apocalipse atribuindo-o tanto à Maria quanto à Igreja já que temos o testemunho do mesmo século de Cassidoro que fez uso desta dupla interpretação [2].

No século VII, o arcebispo de Cesaréia, André, embora reconhecesse a existência da interpretação mariana do texto em seu meio, prefere a eclesiológica, justificando-se na autoridade de São Metódio. O Pseudo-Epifânio, contemporâneo de André, no entanto, se utilizou da interpretação mariana do texto [3].  A partir do século VIII, encontramos vários exemplos de Teólogos utilizando livremente o texto de Apocalipse para se dirigir tanto à Maria quanto à Igreja. Exemplos disso são Santo Ambrósio de Autpert [4] e Alcuino [5].

A interpretação mariana do texto de Apocalipse 12 pode ainda dizer-se certamente implícita em alguns outros princípios explicitamente ensinados pelos Santos Padres no decorrer dos séculos do Cristianismo:

a) É implícito o reforço à interpretação mariana no princípio da «Ecclesia Typus», explicitamente ensinado por Santo Irineu de Lião [6], São Clemente de Alexandria [7], Tertuliano de Cartago [8], Santo Efrém da Síria [9], Santo Ambrósio de Milão [10], São Gregório de Nissa [11], Hegemônio [12], Santo Epifânio [13], Santo Agostinho [14], São Cirilo de Alexandria [15], e São Beda, o Venerável [16]. Deste princípio deduz-se que Maria é o tipo perfeito da Igreja, a personificando em todo o seu agir. Neste caso, a interpretação de Apocalipse 12 seria válida tanto para a Igreja quanto para Maria (afinal, uma representa a outra).

b) É também implícito o reforço à interpretação mariana do texto de Apocalipse 12 na interpretação mariana da «Mulher» de Gênesis 3,15, explicitamente ensinada como Maria por Santo Justino Mártir[17], Santo Irineu de Lião [18], São Cipriano de Cartago [19], Santo Efrém da Síria [20], Santo Ambrósio de Milão [21]… Como Apocalipse 12 é o cumprimento de Gênesis 3,15, a «Mulher» de Gênesis 3,15 só pode ser a «Mulher» de Apocalipse 12. Neste caso, novamente os Padres da Igreja reforçam a interpretação católica do texto do Apocalipse.

c) É também implicito o reforço da interpretação mariana do texto do Apocalipse no título de «Nova Arca da Aliança» atribuído à Maria explicitamente por alguns Padres como Hipólito de Roma [22], os Sermões coptas do século IV atribuídos a Santo Atanásio, São Proclo de Constantinopla [23], Crisípo de Jerusalém [24], Theotoknos de Lívia [25], André de Creta [26] e João Damasceno [27] já que, uma vez que Maria é a Nova Arca da Aliança, ela é quem aparece nos Céus de Apocalipse 11,19-12,1-17.

Somando-se as provas implícitas com as provas explícitas, conclui-se que a interpretação mariana é, não só coerente, como também está presente em todos os séculos de teologia católica.

CONCLUSÃO

Não há problema algum em interpretar Apocalipse como uma referência à Israel ou à Igreja. O problema se dá em não reconhecer a figura que o texto se refere primariamente: a Virgem Maria. Todo o texto gira em torno do cumprimento de Gênesis 3,15. Este texto se refere à «Nova Eva», não ao povo de Deus (que é justamente a descendência da Mulher, mas não a Mulher em si). O texto de Apocalipse 12 é, sem dúvidas, um texto mariano que influenciou gerações de cristãos na devoção à Santa Mãe de Deus.

NOTAS

[1] GRAEF, Hilda, Mary: A History of Doctrine and Devotion, Vol. 1: From the Beginnings to the Eve of the Reformation (London: Sheed and Ward, 1963), pp. 131-132), veja também: nota 61, Tim Perry, Mary for Evangelicals (Downers Grove, Illinois: Intervarsity Press, 2006), p. 113.
[2] CASSIDORO, Complexiones in Apocalypsim 7: ML 70,1411. Veja: John McHugh, The Mother of Jesus in the New Testament (New York: Doubleday Company, Inc, 1975) p. 471.
[3] PSEUDO-EPIFÂNIO, Hom. 5 in Laudes B. V. M.: MG 43, 493 CD, mencionado em John McHugh, The Mother of Jesus in the New Testament (New York: Doubleday Company, Inc, 1975) p. 471.
[4] AMBRÓSIO AUTPERT, In Apocalypsum, Lib. 5 (Maxima Bibliotheca Veterum Patrum, Lyons, 1577, pp. 530-2), mencionado em John McHugh, The Mother of Jesus in the New Testament (New York: Doubleday Company, Inc, 1975) p. 471.
[5] ALCUINO, Comentário no Apocalipse, 5 (ML 100, 1152-3), mencionado em John McHugh, The Mother of Jesus in the New Testament (New York: Doubleday Company, Inc, 1975) p. 471.
[6] Ireneu de Lião, Adv. Haer. III,10; SC 34,164.
[7] Clemente de Alexandria, Paedag. I, 6, 21, PG 8,300-301.
[8] Tertuliano, Adv. Marc. 2,4,4-5; PL 2,289A.
[9] Efrém da Síria, Hinos sobre a crucificação, 4,17; CSCO 249, p. 43.
[10] Ambrósio de Milão, In Lucam 2,7; PL 15, 1555.
[11] Gregório de Nissa, De virg. 2: PG 46,324B.
[12] Hegemônio, Acta Archelai, 55,3; PG 10,1508.
[13] Epifânio de Salamia, Haer. 78, 19; PG 42,730.
[14] Agostinho de Hipona, Serm. Denis, ed. Morin, 8, p. 163.
[15] Cirilo de Alexandria, Hom. Div. 4; PG 77,996B-C.
[16] Beda, o Venerável, In Luc. expos., I, cap. 2, PL 92, 330.
[17]  «São Justino (morto em 165 d.C.) em várias passagens de seu Diálogo com Trifão (Justino, Diálogos 54, 1-2; 63,2; 76,2; 1 Ap 32, 9-11-14) dá uma interpretação messiânica-mariana explícita para Gênesis 3:15. Segundo ele, o episódio da fuga para o Egito (Mt 2: 15-18) é o primeiro cumprimento da profecia do Gênesis. A evidente proximidade de Maria com a Criança “recorda muito bem que entre a mulher e sua descendência em Gn 3:15, que entram em conflito com a serpente tentadora e seus descendentes, vê em Herodes e em seus desenhos perversos a primeira armadilha estabelecida pela serpente para destruir a mulher e seu filho” (Cf. A. Gila, La Vergine Madre, 99). » (PE. SETTIMIO M. MANELLI, F.I., Mary at the Foot of the Cross V: Immaculate Conception and Coredemption, (Academy of the Immaculate), pp. 276)
[18] «Santo Irineu de Lyon (morto em 200 d.C.), baseando-se na teoria da “recapitulação”, vê as palavras de Gn 3:15 como sendo cumpridas em Cristo e em Maria. A “semente” da mulher é a “semente… nascida de Maria”, Cristo, que esmaga a cabeça da serpente (cf. Irineu, Adversus Haereses III, 23, 7 (SC 211, 462)).» (PE. SETTIMIO M. MANELLI, F.I., Mary at the Foot of the Cross V: Immaculate Conception and Coredemption, (Academy of the Immaculate), pp. 276)
[19]  «O primeiro no Ocidente a equiparar a mulher de Gn 3:15 com Maria é São Cipriano (morto em 258 d.C.) (ver A. Gila, “La Vergine Madre”, 100). O bispo de Cartago vê uma ligação estrita entre o Protoevangelho e a profecia do Emmanuel em Is 7:14. Comentando sobre a profecia do profeta Isaías a Acaz, o Rei de Judá, ele escreve: “Esta semente que Deus predisse procederia da mulher que deve atropelar a cabeça do diabo. Em Gênesis [nós lemos]: “E eu colocarei inimizade entre ti e a mulher e a sua descendência: Ele esmagará a tua cabeça, e tu esmagarás seu calcanhar.” (Gn 3, 15) (Cipriano, Testimoniorum Libri Tres, II, 9 (CSEL 3/1, 73)) » (PE. SETTIMIO M. MANELLI, F.I., Mary at the Foot of the Cross V: Immaculate Conception and Coredemption, (Academy of the Immaculate), pp. 276)
[20] Santo Efrém possivelmente tinha também esse texto na cabeça quando escreveu: «Pela serpente atingir Eva no calcanhar, o pé de Maria a esmagou.»  (Santo Efrem da Síria, Comentário no Diatessaron 10,13; SC 121,191).
[21] «Ecoando a Gênesis 3:15, o santo atribui a Maria uma participação na derrubada do poder de Satanás: “Maria derrotou você, quando ela deu à luz o conquistador, quando, sem qualquer prejuízo para sua virgindade ela deu a luz à ele, que foi crucificado para subjugar você, que morreu para sujeitá-lo” (cf. Santo Ambrósio de Milão, De Obitu Theod., 44, PL 16,1400).» (O’CAROLL, Michael, Theotokos: A Theological Encyclopedia of The Blessed Virgin Mary, pp. 22).
[22] «Em que tempo, vindo o Salvador a nós da Virgem arca construída de ouro puro, em seu interior pelo Verbo, em seu exterior pelo Espírito Santo, entregou seu corpo ao mundo, de modo que se mostrasse sua verdade e se manifestasse a arca?» (Santo Hipólito de Roma, In Dan. VI: PG 10,648).
[23] «Graças a ela todas as mulheres são abençoadas. Não é possível que a mulher deva permanecer sob sua maldição; Ao contrário,ela agora tem um motivo para superar até mesmo a glória dos anjos. Eva foi curada… Hoje, uma lista de mulheres é admirada… Isabel é chamada abençoada por ter concebido o precusor, que pulou de alegria em seu ventre, e por ter testemunhado a graça; Maria é venerada, pois ela se tornou a Mãe, a nuvem, a câmara nupcial, e a arca do Senhor.» (São Proclo de Constantinopla, Homilia 5, 3; PG 65:720B).
[24] «A Arca verdadeiramente real, a Arca mais preciosa, foi a Theotokos sempre-Virgem; a Arca que recebeu o tesouro de toda santificação.» (Crísipo de Jerusalém, In S. Mariam Deip., PO 19,338).
[25] Theoteknos de Lívia, A. Wenger, L’Assomption, 282
[26] Santo André de Creta, Homilías em PG 97,869C
[27] São João Damasceno, Homilías em PG 96,724

 

FONTE: Apologistas Católicos

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