O corpo só permanecerá são se sã a mente houver permanecido.
Redação (30/08/2022 16:31, Gaudium Press) “Mens sana in corpore sano” (mente sã num corpo são) é uma expressão bastante conhecida, que quase todo mundo já ouviu ou já leu em algum lugar. Apesar de ter se tornado famosa isoladamente, a frase faz parte de um poema, a Sátira nº X, de autoria do poeta romano Décimo Júnio Juvenal, que viveu entre os séculos I e II. O verso completo diz: “Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são” .
Embora seja muito usada como slogan de academias de ginástica, musculação e fisiculturismo, ela é muito mais profunda do que uma simples exaltação do corpo, algo que se tornou “febre” nos últimos tempos. Quando vista nesse contexto de apologia do físico, a impressão que se tem é a de que um corpo bem cuidado e a prática de exercícios sejam a garantia de uma mente saudável e equilibrada, o que não é, necessariamente, verdadeiro.
Quando a obsessão com o corpo se agiganta, ainda que este ganhe músculos fortes e contornos bem definidos, a mente já deixou de estar sã, porque qualquer tipo de obsessão atesta a fragilidade e o descontrole emocional, ou mental, se preferirem. Apaixonar-se pelo próprio corpo a ponto de colocar o condicionamento físico e a nutrição focada apenas em ganhar força e massa muscular como prioridades, não significa ter a mente sã, pelo contrário.
A virtude está no equilíbrio
É evidente que cuidar do corpo é, antes de qualquer coisa, um dever. Por sinal, um dever sagrado, pois, sendo o corpo templo do Espírito, ele deve ser objeto de todos os cuidados necessários para a manutenção da saúde e do equilíbrio. Descuidar do corpo, da alimentação, do repouso e das atividades necessárias para manter-se saudável pode ser considerado um pecado, visto que nossos corpos são dádivas divinas.
Mas, de que adianta gastar dinheiro, se esforçar até para além do limite se exercitando, “puxando ferro”, malhando, controlando a alimentação e até tomando anabolizantes para definir a forma física e conquistar o “shape” dos sonhos (termo utilizado no universo das academias, significando corpo definido) e descuidar da alma, a “mens sana”?
Não devemos, de forma nenhuma, descuidar da parte física, correndo o risco de nos tornarmos apáticos, desmotivados, moles. Nosso corpo precisa estar saudável e ativo, sempre “preparado para a guerra”, afinal, como diz a bela canção católica: “De batalha amplo campo é a terra” e estamos todos inseridos numa guerra constante e renhida. Mas, quando todo nosso esforço, nossa concentração e nosso tempo livre é focado em ganhar massa muscular, estamos focando apenas na aparência. E, para isso se tornar um vício, uma dependência, é um passo muito curto.
Juvenal termina o seu poema dizendo: “Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio; certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.” E, nós ousamos completar: pela virtude do equilíbrio. Poderia usar um adágio e dizer: “Nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra”, mas, não direi, porque o nosso foco é o Céu, por isso, a mente sã deve vir sempre em primeiro lugar, para que todo o edifício esteja são.
Conquista de toda uma vida
Essa é uma verdade que entendemos melhor à medida que envelhecemos. Depois que passamos dos 40, começamos a sentir um pequeno declínio em nossa vitalidade. Aos 50, o corpo já não responde mais como dez anos antes e, aos 60, começamos a nos sentir mais fracos, algumas dores começam a nos visitar mais amiúde, e nossos reflexos já não são tão ágeis. É o normal da vida.
Chegar a essa fase com saúde, flexibilidade, pressão arterial, nível de açúcar e taxas de colesterol e triglicerídeos controlados deve ser o ideal de vida de todos, mas, é nesta fase que, mais especialmente, devemos seguir o conselho de Juvenal: rezar para que a mente esteja sã, num corpo são.
Algo que é fabuloso, embora um paradoxo difícil de entender, é que, se cultivamos os valores do espírito nos anos áureos da juventude e início da maturidade, quando nosso corpo começa o seu inevitável declínio, temos uma ascensão da alma, uma disposição que vem da consciência tranquila, do dever cumprido, das virtudes cultivadas. Como já escrevi aqui outras vezes, não sou partidário de que a velhice traga sabedoria. É mais fácil ela trazer diabetes, glaucoma, catarata, pressão alta e artérias entupidas, porque a sabedoria é conquista de toda uma vida, não é um atributo mágico que a velhice dá.
Assim como as patologias citadas – entre muitas outras – não se desenvolvem de uma hora para outra apenas porque se envelheceu, mas são consequências de um estilo de vida, o mesmo se dá com a sabedoria, um edifício construído tijolo por tijolo, parede por parede. E é muito comum que, nesta fase, quando já não nos perturbam aflições que consistem nos grandes desafios da pouca idade e nem nos tentam as grandes seduções da vida, nos sintamos, por dentro, com a energia e o vigor dos 30 anos.
Envelhecer bem no corpo e rejuvenescer na alma
E, a fim de que não nos tornemos velhos ridículos, de comportamento inapropriado, é de todo aconselhável um bom espelho, de tamanho razoável, no qual possamos nos mirar todos os dias e ver que, sim, nosso corpo envelhece, nosso cabelo, quando ainda existe, branqueia e nossos olhos, que, conquanto divisem novos horizontes, já não brilham como antes e dificilmente enxergam sem um bom par de óculos.
Dessa forma, envelhecer bem no corpo corresponde a rejuvenescer na alma e ganhar a força necessária para despir a carcaça quando chegar a hora apropriada, e alçar o grande e definitivo voo sem se lamentar ou desejar permanecer cativo na vã utopia da vida passageira.
Pode parecer que eu seja um velho escrevendo especialmente para os velhos, mas, na verdade, escrevo, sobretudo, para os jovens, que, com sorte, envelhecerão amanhã e, com preparo, envelhecerão bem. Portanto, ainda caminhando pelas palavras do poeta Juvenal, peçamos a Deus “uma alma corajosa que careça do temor da morte”, mas que não seja estúpida o bastante para achar que a morte não virá ao seu encontro ou que poderá driblá-la com os músculos de titânio do seu corpo, conquistados com muito suor e membros doloridos, porque tudo passa, e passa muito rápido e o corpo só permanecerá são se sã a mente houver permanecido.
Por Afonso Pessoa
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