InícioApologeticaA Assunção de Maria Santíssima nos primeiros cinco séculos da Era Cristã

A Assunção de Maria Santíssima nos primeiros cinco séculos da Era Cristã

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A ASSUNÇÃO DE MARIA SANTÍSSIMA

NOS PRIMEIROS CINCO SÉCULOS

DA ERA CRISTÃ

 

GABRIELE M. ROSCHINI

Foi vivamente discutido (especialmente antes do dia 1 de Novembro de 1950) se, no que diz respeito à Assunção, se podia falar de uma tradição explícita que remontasse à idade apostólica, ou se devia falar, nos primeiros três ou quatro séculos, de uma tradição somente implícita (contida por assim dizer noutra verdade explicitamente professada).

O Pe Otto Faller, S.J., numa sua douta dissertação contra o Pe Jugie, concluía que, no estado actual dos estudos, não se podia ainda provar a existência de uma tradição explícita que remontasse aos Apóstolos, todavia permanecia «aberta» a «possibilidade de uma tal tradição explícita», particularmente «pelo facto de que o silêncio das fontes, até hoje por nós conhecidas, não é já de cinco séculos (como afirmava o P. Jugie), mas de quase dois séculos, ou dois séculos e meio desde a morte de São João»[1].

* * *

I

O SÉCULO II

Importa distinguir – como eu já dei a entender – entre tradição implícita e tradição explícita. A primeira pode dizer-se certa; a segunda, ao contrário, pode dizer-se só muito provável.

A Assunção pode dizer-se certamente implícita em alguns princípios explicitamente ensinados pelos Padres do século II, a saber: o princípio da recapitulação, o princípio da maternidade cheia de mistério e o princípio de uma virgindade mirífica.

É implícita a Assunção no princípio da recapitulação, explicitamente ensinado no século II por São Justino[2] e por Santo Ireneu[3]. Deste princípio deduz-se que Maria, o oposto de Eva, reparadora da ruína de Eva (o pecado e, como pena do pecado, a morte), não podia ser sujeita àquela mesma ruína da qual Ela com Cristo devia libertar-nos.

É implícita a Assunção nos princípios da maternidade cheia de mistério e de uma virgindade mirífica explicitamente ensinados no século II por Santo Inácio[4], São Justino[5] e Santo Ireneu[6]. O corpo de Maria, consagrado com mistérios tão elevados, tão transcendentes, não podia ser presa da decomposição da morte. A preservação da corrupção do parto reclamava a preservação da corrupção da morte.

Para além desta tradição implícita, pode também falar-se com muita probabilidade (não ainda – repito – com certeza) de uma tradição explícita que remonta ao tempo dos Apóstolos.

Pelo apócrifo ou pseudo-epígrafo «Transitus Beatae semper Virginis Mariae» do Pseudo-Melitão de Sardes (Século IV) ficamos a saber que um certo Lêucio Carino, herege (o qual afirma ter vivido «com os Apóstolos»), pelos meados do século II[7], compôs um «Trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria»[8]. Todas as lendas que surgiram sucessivamente sobre o tema da Assunção, não seriam mais que amplificações deste relato primitivo[9]. Neste apócrifo primitivo, o herege gnóstico Lêucio Carino misturou muitos erros, tornando-o «totalmente ímpio, a ponto de ter sido proibido, na Igreja de Deus, não só lê-lo, mas também ouvir a sua leitura»[10]. O famoso «Decreto Gelasiano» chama Lêucio «discípulo do diabo» e inclui os seus escritos entre os «apócrifos que não devem aceitar-se» (por causa dos erros neles contidos).

O antiquíssimo escrito de Lêucio Carino sobre o «Trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria» desapareceu. Deixou porém alguns vestígios em alguns escritos subsequentes, ou seja, no «Transitus Mariae» de Epifânio Monge (século IX) e na chamada «Visão» atribuída a Cirilo de Jerusalém.

O Pseudo-Melitão propôs-se expurgar dos erros o «Trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria» do Pseudo-Lêucio Carino. A razão fundamental da incorrupção completa e da glorificação do corpo da Virgem depois da morte é – como veremos – a incorrupção virginal de Maria, não obstante a sua maternidade: a mesma razão fundamental adoptada por Lêucio. Epifânio Monge afirma: «Que ninguém me repreenda pelo facto de eu ter recorrido a livros apócrifos ou a hereges (alusão evidente a Lêucio): os testemunhos dos inimigos, de facto, são mais eficazes, como afirma Basílio Magno»[11]. Descreve depois o final da vida terrena de Maria nestes termos: «(Os Apóstolos) colocaram-na na sepultura, ou seja, no Getsémani. E depois de pouco tempo, diante daqueles que estavam presentes, o corpo torna-se invisível aos seus olhos»[12]. Trata-se, evidentemente, de um desaparecimento miraculoso.

O «núcleo» primitivo comum das narrações derivadas do apócrifo «Trânsito» de Lêucio Carino é constituído, evidentemente, pelo «desaparecimento prodigioso» do corpo virginal de Maria não sujeito à corrupção do túmulo[13].

Mas o mais fiel – segundo Capelle – entre os escritos derivados do «Trânsito da Bem-Aventurada sempre Virgem Maria» de Lêucio Carino é a chamada «Visão» de São Cirilo de Jerusalém, contida num antigo apócrifo copta[14]. Segundo este relato, São Cirilo teria sabido pela própria Virgem, por meio de uma visão, que Ela tinha sido informada por Cristo, seu Filho, do seu próximo trânsito. Conforme o pedido de Maria, o Apóstolo João chama Pedro e Tiago. A Virgem participa-lhes a mensagem recebida do Filho: «Passarão ainda três dias antes que eu venha até junto de Ti e transporte a tua alma e o teu corpo para a minha cidade, a celeste Jerusalém. E todos os meus santos ficarão admirados com a glória que eu te darei nesse lugar, porque tu reconciliaste Deus e os seus Anjos com os homens. Exaltar-te-ei acima de todos os santos e mandarei aos meus Anjos que cantem sempre hinos diante de Ti, visto que Tu és semelhante a eles na pureza e na virgindade… Não te preocupes, ó Mãe, com o teu santo corpo, nem com a sua sorte, nem com o lugar onde ele será colocado… Eu ocultarei o teu corpo na terra, e ninguém conseguirá encontrar o teu corpo na terra, no lugar onde eu o colocarei, até ao dia em que eu o ressuscitarei incorruptível. Um perfume suave emanará do teu corpo até ao dia em que o ressuscitarei…».

A Virgem então encarrega São Pedro de mandar rapidamente um servo seu – um certo Birro (referido nos «Acta Ioannis»: cfr. Zahn, ed. cit., p. 250) – a pegar a sua veste de seda. Recebendo-a, Ela estende-a no chão e reza voltada para Oriente; depois estende-se sobre o seu leito, sempre voltada para Oriente; por fim, à chegada de Jesus, ela expira e Jesus recebe o seu espírito numa auréola de luz. Segue o cortejo fúnebre, perturbado momentaneamente pelos Judeus. Os Apóstolos afastam-se, os assaltantes aproximam-se, mas eles não vêem mais nada para além do féretro vazio (o corpo da Virgem tinha desaparecido prodigiosamente), enquanto um suave perfume se espalha por todo o lado. Faz-se então ouvir uma voz que diz: “Que ninguém procure o corpo, até ao grande dia da parusia de Cristo”[15].

«Os detalhes deste relato – referiu o Abade Capelle – revelam a sua imediata dependência de Lêucio»[16]. Há, de facto, um paralelismo perfeito entre o fim privilegiado de Nossa Senhora descrito no supradito apócrifo do Pseudo-Cirilo (em razão da virgindade) e o fim privilegiado de São João, descrito nos «Actos de João» de Lêucio. Nestes «Actos», realmente, eis o que se relata acerca do final da vida terrena de São João: «Estando ele voltado para Oriente, deu graças, todo resplandecente de luz e disse: “Ficai comigo, Jesus Cristo, meu Salvador”; e desceu à tumba onde já tinha estendido as suas vestes; e, depois de ter dito: “A paz esteja convosco, irmãos”, entregou a sua alma em glória”» (cfr. Zahn, Acta Joannis, p. 250)[17].

Trata-se – note-se bem – de um desaparecimento miraculoso do corpo de Maria. A Assunção corporal, portanto, descrita no século IV pelo Pseudo-Melitão, não seria outra coisa senão uma explicação desse desaparecimento miraculoso. A base teológica de uma tal explicação é constituída pelo nexo necessário entre a prodigiosa integridade virginal de Maria, na sua maternidade relativa a Cristo, e a incorrupção física do seu corpo virginal. A razão era óbvia: uma virgem – como Maria – jamais tocada pela mínima corrupção, devia ser imune também à corrupção do túmulo, consequência das outras corrupções. É esta ideia base o «núcleo» primitivo, a raiz da verdade da Assunção corpórea de Maria Santíssima.

Resumindo: o «primeiro núcleo da verdade da Assunção é constituído pelo desaparecimento prodigioso do corpo de Maria (narrado em meados do século II por Lêucio Carino), desaparecimento considerado como intimamente relacionado com a perene integridade virginal de Maria. Portanto, desde meados do século II (cerca de 50 anos depois da morte de São João) admitia-se um desaparecimento prodigioso do corpo de Maria relacionado com a sua perpétua virgindade ou incorruptibilidade. Sobre este final da vida terrena de Maria, o mesmo Lêucio Carino moldou o relato do final da vida terrena do Apóstolo São João[18].

* * *

 

II

O SÉCULO III

Continua neste século a afirmação explícita daqueles princípios nos quais está implícita a afirmação da Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma à glória do Céu; e não falta a afirmação explícita da Assunção corpórea.

Ensinam explicitamente o «princípio da recapitulação» Tertuliano[19], Orígenes[20] e São Gregório Taumaturgo[21]. Ensinam, por outro lado, explicitamente o «princípio da maternidade cheia de mistério» e de uma «virgindade mirífica» Tertuliano[22], Orígenes[23], Santo Hipólito[24] e São Gregório Taumaturgo[25].

Mas não falta também, ao que parece, no século III, a afirmação explícita da Assunção corpórea de Maria. Segundo o estudioso orientalista Van Lantschoot, no século III traçar-se-iam as origens do apócrifo «Evangelho de Bartolomeu», do qual existem três recensões sahídicas: A e B (do século X) e C (do século XII). Na recensão B (na recensão A falta o fólio) lê-se: «Cristo abençoou-a (a Maria) dizendo: “Quando tu tiveres deixado o teu corpo, eu mesmo virei até junto de ti com Miguel e Gabriel. Nós não te deixaremos ter medo da morte, diante da qual todos têm medo. Eu te colocarei no lugar da imortalidade e tu estarás comigo no meu reino e eu colocarei o teu corpo debaixo da Árvore da vida; o Querubim armado com uma espada de fogo velará por ele até ao dia do meu reino”». E na recensão C lê-se: «E quando tu tiveres deixado o teu corpo, eu voltarei com meu Pai, com Miguel e todos os Anjos, e tu estarás connosco no meu reino. E o teu corpo eu o confiarei aos querubins da espada de fogo, para que eles velem por ele até ao dia da minha parusia e do meu reino»[26]. Estas expressões parece que devem entender-se como relativas ao corpo animado da Virgem. Assim pensa o Padre Balic[27].

* * *

III

SÉCULO IV

 

            No Oriente temos o testemunho de Santo Epifânio e de Timóteo de Jerusalém; no Ocidente temos o de Santo Ambrósio, bem como o «Transitus» latino do Pseudo-Melitão de Sardes.

            Santo Epifânio (nascido na Judeia no ano 314 e morto no ano 403), no seu «Panarion» (escrito nos anos 374-377), na heresia 87, trata das duas heresias mariológicas: a dos «Antidicomarianitas» (os quais negavam a virgindade de Maria depois do parto e, por isso, pecavam por defeito) e as Coliridianas» (algumas mulheres da Arábia que ofereciam a Maria sacrifícios para honrar «a Rainha do Céu» e que por isso pecavam por excesso). Na sua carta, o Santo demonstra como, depois da entrega de Maria a São João (Jo. 19, 26-27), a Sagrada Escritura nada fala dos posteriores episódios da vida de Maria, isto é, se ela viveu com São João[28]; nem sequer a Escritura fala do modo como Ela terminou a sua vida terrena. Posto isto, Santo Epifânio exprime uma verdadeira dúvida sobre o «modo» como a Virgem passou desta vida para a outra vida, «se Maria morreu ou não, e se Ela foi sepultada ou não»[29].

            Também no segundo texto (contra as «Coliridianas», adoradoras da Rainha do Céu), Santo Epifânio repete a sua dúvida acerca do «modo» como a Virgem terminou a sua vida terrena e ao mesmo tempo indica a certeza do «facto» da glorificação corpórea dela. Acerca do fim da vida terrena da Virgem, Santo Epifânio dá três hipóteses: morte tranquila com sepultura; martírio; trasladação sem morte para a eternidade. Ora bem, em todas as três hipóteses o Santo Doutor não deixa de assinalar a glorificação do corpo da Virgem. Na primeira hipótese (a da morte e sepultura) afirma que «a sua dormição é na glória e a sua partida é na castidade e na coroa da virgindade»[30]. Na segunda hipótese (a do martírio) «a sua glória é entre os mártires e o sagrado corpo daquele por meio da qual resplandece para o mundo a luz é na bem-aventurança»[31]. Na terceira hipótese (a da imortalidade) Maria foi para a glória do céu sem passar pela morte e ressurreição[32].

            Resumindo, Santo Epifânio: 1) não duvida de que o fim da vida terrena de Maria foi repleto de milagres, ou seja, não foi comum, mas prodigioso; 2) o mesmo silêncio da Sagrada Escritura sobre um tal fim é devido à «superabundância do milagre», «para não provocar o assombro na mente humana»; 3) que na verdade supõe de tal maneira portentoso o fim da vida terrena de Maria que considera como possível e, mais ainda, plausível (não ainda certa) a trasladação imediata de Maria em alma e corpo à vida imortal (sem a morte e a ressurreição); 4) ele duvida apenas do «modo» como a Virgem deixou a vida terrena (se morreu ou não morreu), sem duvidar de maneira nenhuma da glorificação em alma e corpo de Maria Santíssima; 5) evitou falar explicitamente da tradição assuncionista já vigente no seu tempo, porque pretendia refutar a heresia das Coliridianas, as quais se excediam no culto da Rainha do Céu, considerando-a como uma deusa[33]. A morte, com efeito, é o que distingue geralmente o homem de Deus. A morte é o destino do homem.

            O insigne Bispo de Salamina sabe muito bem, no entanto, que o termo da vida terrena de Maria «não foi ordinário», mas «cheio de prodígio, capaz de lançar no assombro a mente humana»[34]. E acrescenta logo que «a Escritura, transcendendo a capacidade da mente humana, deixou o acontecimento na incerteza (ou seja, se Maria permaneceu imortal ou se morreu), por causa daquele vaso exímio e precioso, para que ninguém pudesse suspeitar dela qualquer coisa de tipo carnal»[35]. Esta certeza demonstrada por Santo Epifânio relativamente ao termo portentoso da vida de Maria adequa-se muito bem à tradição já clara e explícita naquele século e no século seguinte acerca da Assunção de Maria Santíssima. Há uma só diferença entre Santo Epifânio e a tradição existente no seu tempo e depois dele: enquanto para Santo Epifânio a morte e a ressurreição de Maria é incerta (visto que admite que a Virgem poderia ter subido ao céu sem morrer nem ressuscitar), a forma da tradição existente no seu tempo e a seguir a ele admitia a morte e a ressurreição.

            Timóteo, presbítero de Jerusalém, contemporâneo de Santo Epifânio, deixou uma Homilia, feita publicamente na festa da Apresentação no Templo (que se celebrava no Oriente no século IV). Esta Homilia, como as suas marcas internas mostram (nunca, por exemplo, a Virgem é chamada Theotokos) devia ser composta muito provavelmente no fim do século IV ou início do século V (antes da controvérsia nestoriana; dos hereges apenas nomeia Ario). Nesta Homilia Timóteo refere que alguns, baseando-se na profecia de Simeão, acreditaram que Maria morreu mártir. Ele rejeita esta opinião: «A espada de metal – diz Timóteo – atravessa o corpo, não divide a alma». E acrescenta: «A Virgem por isso permaneceu até hoje imortal, porque Aquele que habitou nela a transferiu para o lugar da ascensão»[36], ou seja, no Paraíso celeste. Temos aqui um testemunho da Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma ao céu. Sendo assim, uma tal doutrina era professada em Jerusalém, no século IV[37], não já como uma coisa nova, mas como comummente conhecida (de facto ela é afirmada ocasionalmente), e, por isso, supõe uma tradição muito antiga (remontando pelo menos a meados do século IV). As palavras de Timóteo, tomadas no seu sentido óbvio, significam que a Virgem passou da terra ao céu sem passar pela morte nem pela ressurreição. Aquela expressão: «permanece imortal até hoje», afirma-o com suficiente clareza[38].

            No Ocidente, Santo Ambrósio (+ 397), no século IV, afirmava, pelo menos de modo indirecto, a Assunção corpórea de Maria. Ele é o primeiro, entre os Padres, a colocar-se o problema da ressurreição de Maria Santíssima e a resolvê-lo positivamente. No «De institutione Virginis» (escrito no ano 391), falando de Maria Santíssima aos pés da cruz, afirmava abertamente que, se a Virgem tivesse morrido no Calvário juntamente com o Filho, seria também ressuscitada juntamente com Ele. Eis as suas palavras: «Pendia da cruz o Filho, a Mãe oferecia-se aos golpes dos perseguidores. Queria Ela com isso prostrar-se diante do Filho? Este sentimento de uma mãe que recusa sobreviver ao filho, reverte todo em seu louvor. Desejava Ela (oferecendo-se aos golpes dos perseguidores) morrer com o Filho? Neste caso Ela estremecia de alegria com o pensamento de ressuscitar com Ele, bem ciente que estava do mistério, não ignorando que Ela era a Mãe daquele que havia de ressuscitar»[39].

            Deste importantíssimo texto resultam duas coisas: 1) Na hipótese de Maria, sob a tempestade dos golpes dos perseguidores, ter sido morta juntamente com o Filho, seria ressuscitada juntamente com Ele. Admitindo, portanto, que a Virgem – segundo Santo Ambrósio –, se tivesse morrido no Calvário, teria tido o direito a uma pronta e imediata ressurreição, é lógico pensar que não teria perdido esse direito nos anos que ela vivesse depois da tragédia do Gólgota, uma vez que a razão-base de um tal direito permanece sempre a mesma: a divina Maternidade. 2) Esta afirmação não é feita como uma opinião pessoal do santo Doutor, mas como uma verdade óbvia, admitida ou que pode ser admitida certamente por todos. Manifesta, com efeito, não uma sua impressão subjectiva, mas constata uma coisa objectiva, óbvia, a saber: o arrebatamento da alegria de Maria diante da certeza de que, se tivesse morrido juntamente com o Filho, teria ressuscitado juntamente com Ele; a acrescenta ainda a razão teológica fundamental, sobre a qual se baseia a persuasão de Maria de ressuscitar juntamente com Cristo, a saber: a divina Maternidade. A Virgem Santíssima não ignorava, de facto, – como assinala Santo Ambrósio – o mistério de ser Mãe daquele que havia de ressuscitar. Entre a divina Maternidade e a hipotética ressurreição de Maria existe uma dupla conexão: fisiológica e moral. A conexão fisiológica é fundada na originária identidade da carne entre o filho e a mãe, que exige uma sorte idêntica. A conexão moral, por outro lado, é fundada na honra que todo o filho deve – tanto por lei natural como positiva – à própria mãe.

No século IV, ao que parece, destaca-se o apócrifo ou pseudo-epígrafo «Transitus Mariae» do Pseudo-Melitão[40] (o qual se oculta sob o nome de Melitão, Bispo de Sardes, discípulo de São João). Ele – católico – procura depurar o «Transitus» de Lêucio, herege. As heresias que ele combate no seu relato são as do fim do século IV: o Arianismo e a negação da Virgindade de Maria depois do parto (cfr. cap. XII e XV). A isto acrescenta-se o facto de, no «Transitus» do Pseudo-Melitão, não haver nenhuma marca dos erros dos séculos V e VI. Nossa Senhora quase sempre é chamada de «Maria», ou de «Bem-Aventurada Maria» (seis vezes), ou «Santa Maria» (duas vezes), nunca «Theotokos» (como é comummente chamada nos apócrifos posteriores ao Concílio de Éfeso). Só uma vez no texto e uma outra vez no prólogo é chamada «Santa Mãe de Deus», indício da passagem do século IV (quando o termo «Theotokos» era já usado algumas vezes) para o século V (quando, depois do Concílio de Éfeso, se torna o termo clássico para indicar Maria).

Também a língua latina usada no «Transitus» do Pseudo-Melitão adequa-se mais ao século IV que ao V e VI. Todas as marcas internas do «Transitus» do Pseudo-Melitão convergem para o fim do século IV[41]. Uma vez que o texto latino é uma tradução do grego, daí resulta que o texto original deva ter sido escrito primeiro, isto é, ao menos por meados do século IV.

Posto isto, afirmamos que o Pseudo-Melitão, por volta de meados do século IV, atestava a plena fé da Igreja na Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma à glória do céu.

O Pseudo-Melitão relata que a Virgem, a seguir à entrega que Cristo faz dela na Cruz (Jo. 19, 26-27), permanece com o Apóstolo predilecto São João durante o resto da sua vida terrena. Depois da dispersão dos Apóstolos para a pregação do Evangelho, Maria permaneceu na casa dos parentes de São João, que se encontrava junto do Monte das Oliveiras. É aí que, um dia, enquanto rezava sozinha e exprimia o desejo de juntar-se a Jesus, lhe aparece um Anjo e, depois de a ter saudado, lhe entrega uma palma do paraíso de Deus toda resplandecente e recomenda-lhe que seja levada diante do seu féretro, porque Ela morreria dentro de três dias. Era o 22º ano depois da Ascensão. Desaparecido o Anjo, Maria coloca a sua veste festiva e, com a palma na mão, vai ao Monte das Oliveiras. Faz aí oração e depois volta para casa. Rapidamente chega de Éfeso o Apóstolo predilecto, transportado numa nuvem. Pouco depois, sobre nuvens chegam também os outros Apóstolos. Apresenta-se também São Paulo. João apresenta-os todos a Maria que se põe a conversar com eles. À hora tércia do terceiro dia chega o Senhor e convida sua Mãe a partir deste mundo «com plena confiança». A estas palavras, a Virgem levanta-se, estende-se sobre o seu leito e entrega a alma a Deus. Os Apóstolos vêem então uma luz tão resplandecente que superava a brancura da neve e o esplendor de qualquer metal. O Salvador ordena aos Apóstolos que sepultem Maria num sepulcro novo, situado à direita da cidade, no lado ocidental, e que esperem aí a sua vinda. A seguir, depois de ter entregue a alma da Virgem («a nossa santa Mãe Maria») ao Arcanjo Miguel (guarda do paraíso e chefe da nação hebraica), o Salvador, juntamente com os Apóstolos, volta para o Céu.

As três jovens virgens que faziam companhia a Nossa Senhora tratam-lhe o corpo, revestindo-a sem que a vejam e um perfume de uma suavidade incomparável emana dos restos mortais. Quando tudo ficou pronto, teve início o funeral. João diante do féretro leva a palma; Pedro e Paulo transportam o féretro com o corpo: Pedro do lado da cabeça e Paulo do lado dos pés. Pedro inicia a salmodia com as palavras: «In exitu Israel de Aegipto, aleluia!» (N.T.: «Quando Israel saiu do Egipto, aleluia»). Os outros Apóstolos prosseguem o canto com uma voz dulcíssima. E eis que por cima do féretro se forma uma coroa luminosa semelhante ao círculo lunar. As milícias angélicas, transportadas sobre as nuvens, entoam cânticos de incomparável doçura. A este canto junta-se uma multidão de pessoas (15000) e um do meio da multidão, um «príncipe dos sacerdotes», protesta e atira-se contra o féretro para o derrubar, mas as suas mãos tornaram-se secas pegadas ao féretro. Os outros da multidão são cegados pelos anjos, pelo que ficam incapazes de socorrer o infeliz. Então aquele desgraçado implora a piedade do Príncipe dos Apóstolos, recordando-lhe que tinha tomado a sua defesa no Pretório de Pilatos, quando uma porteira tentou difamá-lo. São Pedro exorta-o a crer naquele que a Virgem tinha trazido no seu seio. O pobre crê e é curado. Dá-lhe depois a palma que era transportada por João, ordenando-lhe que tocasse com ela os olhos da multidão dos cegos: aqueles porém que não acreditassem morreriam cegos.

Reunidos os Apóstolos no lugar indicado por Jesus, colocam o corpo da Virgem no túmulo novo, fecham o túmulo e sentam-se diante da porta esperando o Senhor, como lhes tinha sido ordenado. E eis que de repente Jesus desce do Céu com um exército inumerável de Anjos resplandecentes e, depois de lhes ter dado a paz, diz aos Apóstolos: “Antes de subir para meu Pai, prometo que vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel no dia da renovação, quando o Filho do homem se sentar no seu trono de majestade. Quanto a esta Virgem, o meu Pai escolheu-a do meio das tribos de Israel para que eu habitasse nela. Que queríeis pois que eu lhe faça?”. Pedro e os outros Apóstolos responderam-lhe: “Senhor, vós escolhestes esta vossa serva para que fosse a vossa morada imaculada; quanto a nós, vossos pobres servos, vós nos tomastes para o vosso serviço… A nós, vossos servos, parece justo que, tal como vós reinais na glória, depois de terdes triunfado da morte, assim também ressuscitai o corpo da vossa Mãe e conduzi-a convosco para a glória do Céu”. O Salvador respondeu: “Seja feito segundo a vossa palavra!”». E ordena a Miguel que leve a alma de Santa Maria. O Arcanjo remove rapidamente a pedra da entrada do túmulo. E o Senhor disse: “Levanta-te, amiga minha, e amada minha! Não tendo tu incorrido em corrupção ao me conceberes, não incorrerás na corrupção do túmulo”. E imediatamente Maria se levanta do túmulo e bendiz a Deus… O Senhor, depois de a ter beijado, entrega-a aos Anjos, para que a levem ao Paraíso. E diz aos Apóstolos: “Aproximai-vos!”. E tendo-se eles aproximado beija-os e diz: “A paz esteja convosco! Como sempre estive convosco, assim estarei convosco até ao fim dos séculos”. Pronunciadas estas palavras, o Senhor, envolto numa nuvem, subiu ao Céu e os Anjos com Ele, levando a Bem-Aventurada Maria ao Paraíso de Deus[42].

O Pseudo-Melitão (ao contrário dos apócrifos surgidos no século seguinte) admite que a ressurreição de Maria acontece rapidamente depois da sua sepultura (não três dias depois, ou ainda muitos dias depois). No relato do Pseudo-Melitão são indicadas também aquelas duas verdades reveladas, nas quais está contida implicitamente, como em germe, a verdade da Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma à glória do Céu, a saber: 1) a plena união de Cristo e de sua Mãe no triunfo sobre a morte mediante a ressurreição (cap. XV); 2) a incorrupção completa do corpo virginal de Maria, que exclui a corrupção do túmulo (cap. XVI).

No fim do século IV ou início do século V, aparece o apócrifo «Liber de dormitione Deipare» [N.T.: «Livro da Dormição da Mãe de Deus»] do Pseudo-João, editado por Tischendorf[43]. O autor – sob o disfarce de «João o Teólogo» (São João Evangelista) – diz que Maria se dirigia até ao sepulcro do Filho, aí queimava o incenso e suplicava ao seu divino Filho que viesse até junto dela para levá-la consigo. Um dia, numa sexta-feira, o Anjo Gabriel anuncia-lhe o seu próximo trânsito. Então a Virgem, juntamente com as três donzelas que a serviam, dirige-se a Belém e aí pede ao Senhor que lhe mande João e os outros Apóstolos, tanto os já falecidos, como os que ainda viviam dispersos pela terra. Primeiro, sobre uma nuvem, vem de Éfeso João e depois chegam todos os outros Apóstolos, igualmente sobre nuvens. Vem ainda o Evangelista Marcos, de Alexandria, e o Apóstolo Paulo, de Tibéria, junto de Roma. Todos, a pedido de Maria, expõem como e porque vieram. Depois de terem rezado juntos, «vem um trovão do Céu e ressoou terrível como barulho de carros… e ouviu-se a voz do Filho do homem…». Seguem-se muitos milagres. Os «sacerdotes dos judeus» perseguiram Maria e os Apóstolos, mas o Espírito Santo fá-los deixar Belém e transporta-os sobre uma nuvem a Jerusalém. Os Judeus invadem a casa de Jerusalém que os acolheu, procurando incendiá-la, mas «uma labareda de fogo irrompe lá de dentro por acção de um Anjo e queimou uma multidão de Judeus». Muitos convertem-se. O Espírito Santo avisa os Apóstolos de que no domingo (como nas outras datas importantes: a anunciação, o nascimento de Cristo, a ressurreição, etc) Jesus voltaria do Céu para o trânsito de Maria. E assim foi. Cristo chega rodeado de Anjos e um eflúvio doce se expande sobre a Virgem. O Senhor diz-lhe: “Eis que a partir deste momento o teu precioso corpo será transportado ao Paraíso e a tua alma aos céus, aos tesouros do meu Pai, ao transcendente esplendor onde está a paz e a alegria dos santos e outras almas”. O rosto da Mãe do Senhor resplandeceu ainda mais de luz e ela, levantando-se, abençoou com a própria mão cada um dos Apóstolos, e todos deram glória a Deus; e o Senhor, estendendo as suas mãos imaculadas, acolhe a santa e pura alma dela. E à partida da sua pura alma o lugar enche-se de perfume e de uma indizível luz, e eis que se ouve uma voz do céu que dizia: “Bendita és tu entre as mulheres!» (Lc. 1, 28). Pedro, correndo, e eu João, bem como Paulo e Tomé, abraçamos os seus pés preciosos, para sermos santificados. Os doze Apóstolos, depois de colocado o seu precioso e santo corpo sobre um ataúde, levaram-no para fora. E aqui é relatada a punição de um judeu – chamado Jefonias – por se ter arremessado sobre o ataúde: «um Anjo do Senhor, com invisível poder, cortou com uma espada de fogo as duas mãos dele e suspendeu-o no ar à volta ataúde». Tendo-se arrependido, São Pedro curou-o. Depois deste prodígio «os Apóstolos transportaram o ataúde e depuseram o precioso e santo corpo dela no Getsémani, num túmulo novo. E eis que um perfume delicioso se difunde pelo sagrado túmulo de nossa Senhora, Mãe de Deus. E por três dias se ouviam vozes de Anjos invisíveis que glorificavam a Cristo, nosso Deus, nascido dela. Ao termo do terceiro dia, as vozes não se ouviram mais e então todos reconheceram que o puro e precioso corpo dela tinha sido transportado ao Paraíso. Logo que ele foi transportado, eis que vimos Isabel, a mãe de São João Baptista, e Ana, a mãe de (nossa) Senhora, e Abraão e Isaac e Jacob e David, que cantavam aleluia, e todos os coros dos Santos que veneravam os preciosos restos[44] da Mãe do Senhor. E (vimos) um lugar radiante de luz, sem que nada fosse mais esplêndido que a sua luz. E aquele lugar, aonde tinha sido transportado o precioso e santo corpo dela ao Paraíso, (estava) todo impregnado de perfume. E (ressoava) a melodia daqueles que louvavam Aquele que nasceu dela… Ao verem a repentina maravilhosa trasladação do santo corpo dela, nós Apóstolos glorificamos o Deus que nos tinha mostrado as suas maravilhas na morte da Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelas orações e intercessões dela seja-nos concedido permanecer todos sob a sua protecção, sob a sua ajuda e sob a sua salvaguarda neste século e no futuro…». Segundo o Pe Jugie e alguns outros, o Pseudo-João teria ensinado uma dupla assunção: a assunção da alma ao Céu e a assunção do corpo ao Paraíso terrestre[45]. Segundo o Pe Balic, por outro lado, o Pseudo-João, embora não ensine de modo explícito a ressurreição gloriosa do corpo da Virgem, ensina-a todavia de modo implícito. Diz-se, com efeito, de modo explícito que o «paraíso» para o qual é transportado o corpo da Virgem é aquele mesmo em que se encontram os Patriarcas e os Profetas e todos os «coros dos Santos». É por isso um lugar de vivos, não de mortos. Entre esses Santos vivos, está aí também a Bem-Aventurada Virgem que, ao contrário dos outros Santos, não deve esperar que o corpo se una novamente à alma. As próprias palavras da promessa de Cristo e do Arcanjo referem-se à pessoa da Virgem. Em nenhum lugar do apócrifo do Pseudo-João se afirma que o corpo da Virgem sem vida espera no Paraíso o tempo em que se juntará à alma. O autor do apócrifo, de facto, seguindo a escatologia dos antigos, não devia conseguir compreender como um corpo, mesmo glorificado, pudesse estar «nos tesouros do Pai», persuadido como estava de que o Céu era como um grande império dividido em reinos e províncias, no topo do qual se encontravam os «Tesouros do Pai» (isto é, a Santíssima Trindade), enquanto nas outras partes celestes inferiores, como no Éden-paraíso, se encontra o corpo glorificado de Maria e onde se encontrarão, depois da ressurreição final, os corpos de todos os outros justos, cujas almas, como que transcendendo os próprios corpos, mergulham na parte suprema do céu, na Santíssima Trindade[46].

Do que acabamos de dizer parece evidente a falsidade da afirmação do protestante Friederich Heiler: «Nos primeiros quatro séculos não encontramos absolutamente nenhum testemunho desta ideia» (a conservação ilesa do corpo de Maria e a assunção corpórea)[47]

* * *

 

IV

SÉCULO V

 

            No opúsculo siríaco «Obsequia B. Virginis», ensina-se abertamente a morte e a ressurreição de Maria Santíssima. Aí, de facto, se diz que os Apóstolos vigiavam por três dias junto ao túmulo de Maria. Eles discutiam com Paulo sobre a doutrina autêntica do Mestre: «Enquanto todos os Apóstolos estão sentados diante da entrada do túmulo de Maria e discutem sobre as palavras de Paulo, Nosso Senhor Jesus, o Messias, vem do Céu com o Arcanjo Miguel e senta-se no meio deles, enquanto discutem sobre as palavras de Paulo». Jesus saúda os Apóstolos e dá razão a Paulo: «Depois destas coisas, Nosso Senhor fez um sinal a Miguel e Miguel começou a falar com a voz de um Anjo poderoso. Os Anjos desceram em cima de nuvens e o número dos Anjos em cada uma das nuvens era de mil; e cantavam louvores diante de Jesus. E Nosso Senhor disse a Miguel: “Faz com que eles coloquem o corpo de Maria nas nuvens”. E quando o corpo de Maria foi levado para as nuvens, Nosso Senhor ordenou às nuvens para irem até à entrada do Paraíso. E quando eles entraram no Paraíso, o corpo de Maria foi colocado debaixo da árvore da vida[48]; eles conduziram a alma dela e a colocaram no seu corpo. E imediatamente Nosso Senhor mandou os Anjos para os seus postos»[49].

            O Abade Capelle, depois de ter examinado todos os elementos da tradição assuncionista, chegou à conclusão de que há uma fonte comum, quer na narração de São João de Tessalónica (que fala da morte de Maria, mas omite a sua ressurreição), quer na narração dos «Transitus» latinos (os quais narram não só a morte, mas também a ressurreição da Virgem). Esta fonte comum – segundo Capelle – devia ser muito próxima do antigo fragmento siríaco que citámos, no qual se fala da morte e da ressurreição[50].

            A intuição de Capelle parece que teve uma plena confirmação na descoberta feita pelo Pe Wenger de um texto grego sobre a «Dormição» (o Vatic. gr. 1982, do século XI) e de uma versão latina desse texto (contida no Códice Augiensis CCXXIX, dos primeiros anos do século IX). Estes dois novos textos afirmam a Assunção de Maria (morte e ressurreição) «segundo as mesmas cenas e com os mesmos termos do fragmento siríaco do fim do século V ou início do século VI. Entre os três textos, a proximidade é evidente e obriga a admitir um protótipo comum que remonte ao menos ao século V»[51].

            O Códice Vaticano grego 1982 restitui-nos o epílogo glorioso do apócrifo primitivo. «O achamento deste epílogo – deduziu-o justamente o Pe Wenger – confere ao apócrifo o seu verdadeiro sentido», isto é, o relato não só da morte, mas também o da ressurreição da Santíssima Virgem. São João de Tessalónica, no seu «Sermão sobre a Dormição da Santíssima Virgem» (composto entre o ano 610 e o 630), que teve uma notável influência na homilética bizantina (e por isso no silêncio a respeito da ressurreição de Maria Santíssima), privando a narrativa do seu epílogo (no qual se fala da ressurreição da Virgem), «não só mutilou o texto, mas também falseou as perspectivas do relato»[52] (omitindo a ressurreição da Virgem). Não obstante a mutilação do texto operada por São João de Tessalónica e a influência dela na homilética grega, a tradição assuncionista (morte e ressurreição) manteve-se inalterada nos «Transitus» latinos e em algumas homilias gregas (por exemplo, Cosme o Vestidor).

            Mas é preciso realçar também – coisa que nunca ninguém fez – a dependência destes três relatos (siríaco, grego e latino) do texto do Pseudo Melitão (do século IV).

            Em todos estes relatos, com efeito, há cenas, ideias e expressões comuns; em todos eles os Apóstolos se sentam diante da entrada do túmulo; em todos, juntamente com os Apóstolos, está presente São Paulo; em todos se diz que o Senhor naquela ocasião desce do Céu com o exército dos Anjos; em todos está presente o Anjo Miguel, a quem o Senhor confia tarefas de primeiro plano; em todos se fala da ressurreição do corpo de Maria. É por isso difícil não ver entre os referidos relatos uma verdadeira proximidade e a dependência directa ou indirecta de uma fonte primitiva comum: o «Transito da Bem-Aventurada sempre Virgem Maria» do Pseudo-Lêucio Carino[53], depurado pelo Pseudo-Melitão.

            Foi talvez sob a influência do supramencionado fragmento siríaco que, em meados do século V, começou a celebrar-se, na Igreja siríaca, a festa da Dormição de Maria (morte e ressurreição). Uma prova desta afirmação temo-la na Homilia siríaca feita por São Tiago de Sarug (pelo ano 490) sobre o «trânsito» de Nossa Senhora, para o dia 14 de Agosto[54]. Trata-se, com toda a probabilidade, de um poema litúrgico, composto para uma festa (ou seja, para o «transito» da Virgem). De facto, onze vezes se repete «Hoc die» («Neste dia»). Dos coros dos Anjos diz-se: «Os companheiros de Miguel (Arcanjo)… hoje com seus cânticos de júbilo celebram o dia de festa («diem festum agunt») e se alegram» (v. 131). E termina com estas palavras: «Neste dia todos os mortos levantam a sua cabeça dos túmulos, porque viram resplandecer sobre si uma luz; viram a morte trepidar e fugir deles e as portas das alturas abrir-se à profundidade da terra» (v.180).

            Tudo isto não é facilmente explicável se não se tratasse da verdadeira festa da «Dormição» de Maria. Não faltam no poema de Tiago de Sarug alusões à Assunção corpórea da Virgem. Com efeito, ele afirma: «Estava presente aquele exército dos profetas de Deus e com eles os Apóstolos, os Evangelistas e os Doutores, e fazem as exéquias do virginal corpo da Bendita, para que fosse para o Éden (o Paraíso) cheio da bem-aventurança divina»[55]. Foi objectado pelo Pe Jugie que o sujeito de «fosse» (abiret) não é o «corpo virginal», mas sim a «Bendita»[56]. Mas também, se se quer afirmar que esse sujeito é a «Bendita», não se pode negar que aí se trata do «corpo virginal» da «Bendita», corpo que, segundo o apócrifo siríaco contemporâneo de São Tiago de Sarug (como já vimos), é transportado para o Paraíso (não o terrestre, mas o celeste, que, segundo a escatologia dos Orientais é o lugar dos justos bem-aventurados).

            Uma válida confirmação da existência dessa festa na Igreja siríaca, em meados do século V, existe no apócrifo siríaco editado por Agnese Smith Lewis. Na primeira recensão (contida num códice dos fins do V ou início do VI século)[57] conta-se que os Apóstolos, voltando para casa, depois de terem assistido à Assunção corpórea da Virgem, decidiram celebrar uma tríplice «memoria annua» dela: 1) no dia 8 de Janeiro (em vez do 6 de Janeiro, dia da morte de Maria, no qual se celebrava o nascimento de Cristo); 2) no dia 15 de Maio (no qual se confiam à Virgem as sementes dos campos); 3) no dia 13 de Agosto, para implorar a bênção dos frutos em vias de maturação. Por isso, na primeira comemoração de Nossa Senhora, era comemorada também a sua «Dormição», como aparece claramente em textos que afirmam que a Virgem deixou este mundo no próprio dia em que deu à luz o seu divino Filho (no dia de Natal). Mas como não era conveniente celebrar a morte de Nossa Senhora no mesmo dia em que ela deu à luz a vida, isto é, o Salvador, os Apóstolos – referem os mencionados textos – ordenaram que a comemoração da morte da Virgem fosse celebrada no dia seguinte, ou seja, no dia 26 de Dezembro[58].

            Esta tríplice «memoria annua» de Nossa Senhora supõe, evidentemente, uma certa evolução litúrgica. Posto isto, podemos dizer: se no início do século VI existiam já na Igreja siríaca três festas marianas, ao menos uma delas devia existir em meados do século V, porquanto, nesse tempo, na Igreja siríaca, já se tinha uma fé plena na Assunção da Virgem em corpo e alma à glória do Céu (como aparece no fragmento siríaco publicado por Wright).

            Podemos, portanto, concluir que no século V – consequência lógica e cronológica dos dados que se encontram nos séculos precedentes – a fé na Assunção corpórea, em vários lugares, era já plena e completa. E por isto é fácil julgar quanto é falsa a afirmação do protestante valdense João Miegge, segundo o qual a Assunção da Virgem «não remonta às fontes mais antigas… mas é uma pura, simples e reconhecida lenda do século VI»[59].

[1] Faller O., S.J., De priorum saeculorum silentio circa Assmptionem B. Mariae Virginis, Romae, 1944, p. 62.

[2] São Justino, Diálogo com Trifão, PG 6, 709C – 712A.

[3] Santo Ireneu, Adversus Haereses III, 22, 3-23, PG 7, 958B – 960B; III, 23, 964B, V, 19, 1175A; V, 21, 1170AC.

[4] Santo Inácio, Epístola aos Efésios 7, 2, PG 5, 549 – 650 Bs.; Epístola aos Efésios 18, 2 e 19, PG 5, 660A.

[5] São Justino, Diálogo com Trifão, 84, 2, PG 6, 673B.

[6] Santo Ireneu, Adversus Haereses III, 19, 2-3, PG 940B – 941B; III, 21, 951B; III, 21, 4 925B – 953A; III, 19, 1, 958C.

[7] O Abade Bernard Capelle está convencido de que «existem boas razões» para situar o «Transitus» de Lêucio «em meados do século II» (La Fête de l’Assomption dans l’histoire liturgique, in Ephemerides Theologicae Lovanienses (1926), p. 43). Segundo Teodoro Zahn (Acta Joannis, Erlangen, 1880, p. 148), Lêucio começa a aparecer entre os anos 140 e 160. Os «Acta Joannis» atribuídos a Lêucio são denunciados pelos Padres só a partir do século IV (cfr. Zahn, lugar citado, p. 195-218). Os «Acta Joannis» publicados por T. Zahn são uma reformulação realizada (entre o ano 450 e 500) pelo católico palestino Pseudo-Prócoro.

[8] Poderíamos perguntar-nos se um tal «Trânsito da Bem-aventurada Virgem Maria» de Lêucio Carino foi um escrito em si mesmo, ou a primeira parte dos «Acta Joannis» hoje perdidos. O Professor Carlos Cecchelli opta por esta segunda hipótese, pela seguinte razão: os «Acta Joannis» que nos restam narram somente os últimos anos do Apóstolo e Evangelista São João. Parece por isso bastante óbvio pensar que Lêucio Carino, antecipadamente, tenha narrado a história dos anos precedentes, a começar pelo episódio da entrega de Maria ao seu cuidado filial (Jo. 19, 27). E é ainda óbvio pensar que Lêucio tenha tratado também do Trânsito de Maria Santíssima (Mater Christi, vol. III, p. 397-398).

O Pe Faller, por outro lado, está convencido de que o «Transitus» composto por Lêucio Carino é um livro em si mesmo, por esta razão: o Pseudo-Melitão, no Prólogo do seu «Transitus», depois de ter falado dos Actos dos Apóstolos [Pedro, João, André, Tomé, Paulo] e dos erros neles contidos, passa a falar, de modo distinto, do «Trânsito da sempre Virgem Maria» e dos erros que também nele estavam contidos. E conclui: «Se o Pseudo-Melitão, como parece, ao citar os Atos dos Apóstolos de Lêucio, cita o verdadeiro livro de Lêucio, por ele lido, não se pode duvidar que ele – o Pseudo-Melitão – cite o verdadeiro «Trânsito de Maria» de Lêucio» (op. cit., p. 56-57).

Seja como for, trata-se de uma coisa acidental: o essencial é que Lêucio Carino, em meados do século II, tenha escrito um «Trânsito de Maria»; pouco importa que tenha sido um escrito em si mesmo, ou um escrito que fizesse parte doutro.

Sobre Lêucio Carino veja-se FABRICIO, Johanne Alberto, Codex Apocryphus Novi Testamenti, I, Hamburgo, 1719, p. 768 ss; LECLERCQ, Henri, Leucius Charinus, in Dictionnaire D’Archeologie Chretienne et De Liturgie; ERBETTA, Mário, Gli apocrifi del Nuovo Testamento, II, Atti e Leggende, Ed. Marietti, 1966, p. 16-20.

[9] «As lendas da Assunção são quase todas amplificações e caricaturas de um relato primitivo da autoria de um certo herege Lêucio» (Bernard Capelle, art. cit. p. 43)

[10] Pseduo-Melitão de Sardes, Transitus Mariae B.: «Nec solum sibi sufficere arbitratus est, verum etiam transitum beatae sempre Virginis Mariae genitricis Dei ita impio depravavit stylo, ut in Ecclesia Dei non solum legere, sed etiam nefas sit audire» [N.T.: Não só lhe pareceu (isto) suficiente, mas também deturpou de tal maneira o trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria Mãe de Deus com um estilo literário ímpio, que é proibido na Igreja de Deus, não só lê-lo, mas também ouvi-lo]. (Cfr. Tischendorf, Apocalypses apocryphae, Lipsiae 1866, p. 124-136, Prologus; PG 5 1231-1232). Lêucio confundia o Pai com o Filho, negava a realidade da Incarnação do Verbo, a liceidade do matrimónio e admitia dois deuses: um bom e outro mau. O Pseudo-Melitão refuta todos estes erros.

[11] «Neque vero si quid ex apocryphis libris, aut ex haereticis deprompserimus, nos quisquam redarguat: «inimicorum enim testimonia fide sunt digniora, ut magnus ait Basilius» (PG 120, 187B) [N.T.: Porém que ninguém nos acuse, se tivermos extraído alguma coisa dos livros apócrifos ou dos hereges: com efeito, os testemunhos dos inimigos são mais dignos de fé, como afirma Basílio Magno].

[12] «… posuerunt eam (Apostoli) in monumentum, nempe in Getsemani. Et post parvum tempus, spectantibus omnibus qui aderant, corpus factum est invisibilis ab oculis eorum» (idib. Col. 215) [N.T.: Os Apóstolos colocaram-na na sepultura, ou seja, no Getsémani. E pouco tempo depois, à vista de todos os que estavam presentes, o seu corpo tornou-se invisível ao seus olhos].

[13] Este «núcleo» primitivo do apócrifo de Lêucio Carino escapou completamente às considerações do P. Faller na obra citada.

[14] Discourse on Mary Theotokos by Cyril, archbishop of Jerusalem, ed. do códice do British Museum (Or. 6784, sc. X-XI) por Budge W. in «Miscellanea Coptic texts in the dialect of upper Egypt». Londres, 1915, p. 626-651.

[15] O Pe M. Jugie (A morte e a Assunção da Santa Virgem, Cidade do Vaticano, 1944, p. 127) vê neste apócrifo uma negação da ressurreição de Maria Santíssima. Parece porém que a conclusão do Pe Jugie vai para além das promessas. No apócrifo em causa, de facto, afirma-se somente que a Virgem reaparecerá no último dia, juntamente com o Filho, na sua majestade. Tanto mais que nas promessas feitas por Cristo à Virgem, se afirma que Ele «levará para a celeste Jerusalém tanto a alma como o corpo» dela. É necessário todavia notar, por uma questão de objectividade, que na variante fragmentada da reconstrução sahídica, em vez do texto «a tua alma e o teu corpo», se lê «a tua alma e o teu espírito» (cfr. Zoega G. Catalogus codicum coptorum manu scriptorum qui in museo borgiano Velitris adservantur, Romae, [N.T.: Catálogo dos códices coptas manuscritos que se conservam no museu Borgiano de Velletri] 1810, p. 223-224).

[16] Cfr. Capelle B., art. cit., p. 35-45).

[17] O Códice R dos «Actos de João» acrescenta: «Trouxemos uma mortalha e estendemo-la sobre ele; depois voltamos para a cidade. No dia seguinte – três dias depois («Visão») – fomos lá, mas não encontramos o seu corpo, porque foi assumido pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo “a quem pertence a glória… Amen”». O códice A, ao contrário, termina assim: «Tendo nós voltado no dia seguinte, escavamos no lugar onde tinha sido colocado, mas não encontramos senão as sandálias e a terra que aumentava. Então recordamo-nos do que foi dito pelo Senhor a Pedro: “Se eu quiser que ele fique até que eu venha, que tens tu a ver com isso?” (Jo. 21, 22)». A mesma coisa, no essencial, consta do final de P.W. e U (incluindo os Metafrastas). Estes porém, tal como U. usam a terceira pessoa (cfr. Ermetta M., op. cit., p. 66).

[18] Pelo século III ou IV se começou a pensar que o Apóstolo e Evangelista São João não morreu, mas que simplesmente tinha adormecido e que esse sono se prolongaria até à parusia. Mas no século IV surgiram outras duas lendas, patrocinadas por homens ilustres: a primeira afirma a imortalidade provisória do Evangelista até ao dia do Juízo universal, como Enoque e Elias, com os quais ele combaterá contra o Anticristo e será morto por este; a segunda, ao contrário, afirma a semelhança do Evangelista com Maria, sob uma tríplice forma: 1) imortalidade gloriosa; 2) morte e ressurreição gloriosa; 3) simples incorrupção do corpo com ou sem a trasladação para um lugar desconhecido até à ressurreição geral e assunção da alma ao Céu (cfr. Jugie M., A morte e a Assunção, p. 710-726).

[19] Tertuliano, De Carne Christi, 17, PL 2, 782B.

[20] Orígenes, Homiliae in Lucam, VI, (p. 40, 1-4 ed. Berol. Rauer).

[21] São Gregório Taumaturgo, Homiliae de Nativitate Christi, cap. 22: em Pitra, Analecta Sacra, IV, p. 394.

[22] Tertuliano, De carne Christi, 21, PL 2 783ª; 787B; 788A.

[23] Orígenes, In Lucam Hom. 17, PG 13, 1844B; In Lev. Hom. VIII, PG 12, 484B-C.

[24] Santo Hipólito, Fragm. ad Ps. 22 (I, 2, p. 147 ed. Berol. Bonwetsch, PG 10, 609B).

[25] São Gregório Taumaturgo, Hom. De Nativitate Christi, Pitra, Analecta Sacra, IV, 388-392-394).

[26] Cfr. Lantschoot Arn., A Assunção da Santa Virgem entre os coptas, In «Gregorianum» 27 (1946), p. 408.

[27] Balic C., Testemunhos da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria desde todos os séculos, Parte I: desde o tempo anterior ao Concílio de Trento, Roma, 1948, p. 43.

[28] Santo Epifânio nega que Maria Santíssima tenha morado com o Apóstolo João (a quem tinha sido entregue por Cristo crucificado), com a intenção de combater aqueles que, apegando-se a este exemplo, tinham consigo as chamadas «mulieres subintroductae» [N.T.: mulheres introduzidas secretamente à convivência com clérigos, que esteve na origem de desvios e, portanto, sujeitas a proibições].

[29] «Sive igitur mortua sit, nescimus, sive sepulta sit» (Haeresia 78, 11, PG 42, 715-716AC) [N.T.: «Nem sabemos se ela morreu nem se foi sepultada»]

[30] «Aut enim est sancta Virgo ac sepulta: in gloria dormitio illius est in castitate exitus eius et in virginitate corona» (Haeresia 78, 28, PG 42, 737) [N.T.: «Quer a Santa Virgem tenha morrido e tenha sido sepultada, a sua dormição é na glória e a sua partida é na castidade e na coroa da virgindade»]. Alude portanto à incorrupção do corpo virginal de Maria Santíssima.

[31] «Aut interfecta est, ut scriptum est: “et ipsius animam pertransibit gladius”; inter martyres est gloria eius et in beatitudinibus sacrum illius corpus, per quam lumen mundo inluxit» (ibid.) [Quer ela tenha sido morta, como está escrito: “uma espada trespassará a sua alma”, a sua glória é entre os mártires e o sagrado corpo daquela por meio da qual  resplandece para o mundo a luz é na bem-aventurança]. Aqui a alusão à Assunção corpórea da Virgem é ainda mais clara.

[32] «Aut denique in vita permansit; potest enim Deus quidquid libuerit, efficere; nam illius exitum nemo novit» (ibid.) [N.T.: «Quer enfim ela tenha permanecido na vida, pois Deus pode fazer o que lhe aprouver; a verdade é que ninguém conhece o seu fim»].

[33] Santo Efrém Sírio (+ 373) aponta apenas para a incorrupção do corpo da Virgem. Diz: «Morre (a Virgem), mas os sinais virginais não desaparecem» (crf. Ricciotti G., Os Hinos à Virgem, Tradução integral do siríaco, Roma, 1925, p. 62). Não faltam porém – segundo o Pe Bover – «algumas expressões que se referem à Maternidade divina, à perpétua virgindade, à mediação universal sob diversos aspectos, as quais ou são alusões à Assunção, ou são pelo menos premissas das quais se pode deduzir a Assunção. Assim, por exemplo, diz: “Espero em vós, porque tendes o querer e o poder, estando com Aquele que de modo inefável gerastes, o Uno da Trindade; Vós podeis persuadi-lo, convencê-lo; tendes as mãos com as quais inefavelmente lhe pegastes; tendes os seios com os quais o alimentastes; recordai-lhe os cueiros…” (Ed. Assemani opera graece, tomus III, p. 524-552). A menção das «mãos», dos «seios» perderia a sua força se a glorificação corporal de Maria não fosse uma realidade presente e operante. Por outro lado, enquanto os «cueiros» são «recordados» («recordai-lhe») como coisa passada, «as mãos» e «os seios» são mencionados como coisa presente. É preciso, porém, reconhecer honestamente que a autenticidade desta passagem (como de outras) de Santo Efrém não é de todo certa» (cfr. Bover J. S.J., A Assunção de Maria, Madrid, 1951, p. 127).

[34] «Sed de ea re, (isto é, do fim terreno da Virgem) conticescit Scriptura  propter excessum miraculi, ne in stuporem coniciat animos hominum» (ibid.) [N.T.: «Mas acerca disto a Escritura é omissa, por causa da superabundância do milagre, não fosse provocar o assombro nos espíritos dos homens»].

[35] «Quippe Scriptura mentis humnanae captum supergressa, rem in incerto reliquit (isto é, se Maria permaneceu imortal ou se morreu), propter vas illud eximium ac praestans, ne quis suspicari possit de ea quidquam carnalis rerum» (idib).

[36] «Hinc accidit ut nonnulli putarent Mariam gladio interfectam, qualem martyres, vitae exitum habuisse, quia scilicet dixerat Simon: “Et tuam ipsius animam penetrabit gladius”. Sed non ita res habet. Ensis enim aere confectus corpus dividit, non dissecat animam. Quare Virgo usque adhuc immortalis est, cum qui inhabitaverat eam in loca ascensionis traduxerit» (Versão do grego do Pe O. Faller, op. cit. p. 24) [N.T.: «Por isso aconteceu que alguns pensavam que Maria teve um fim de vida sendo morta por meio de uma espada, como os mártires, porque Simeão tinha dito: “Uma espada trespassará a tua alma”. Mas a coisa não foi assim. Com efeito a espada feita de metal divide o corpo, não corta a alma. Por isso a Virgem é imortal até hoje, porque aquele que habitara nela conduziu-a ao lugar da ascensão»]

[37] Migne, Krumbacker, Bardenhewer, o Pe Jugie, o Pe Cayré, o Pe Faller (op. cit. p. 27-34) consideram que Timóteo é do século IV. Recentemente, porém, o Abade B. Capelle OSB identificou Timóteo de Jerusalém com Timóteo de Antioquia, que viveu depois do século VI, autor de três Homilias falsamente atribuídas a Santo Atanásio (cfr. Capelle, As homilias litúrgicas do suposto Timóteo de Jerusalém, in Ephemerides Liturgicae 63 (1949) p. 5-26. Mas os melhores manuscritos qualificam Timóteo como «presbítero de Jerusalém» (não de Antioquia); e as marcas internas subestimadas reportam-nos ao século IV.

[38] O Abade Capelle (art. cit. p. 25) assinalou justamente que a expressão «até hoje» impede de dar ao termo «imortal» o significado que quis dar-lhe o Pe Faller (op. cit. p. 30), ou seja, o significado de «imortal» em sentido moral e não no sentido físico de preservação da morte corporal.

Mas Capelle (e depois dele também Jouassard) afirma por sua vez que Timóteo «parece prever que talvez Ela (Maria) venha a ser submetida um dia à sorte comum dos mortais» (art. cit. p. 26), isto é, à morte. Mas esta estranha interpretação não tem um único fundamento nas palavras de Timóteo.

[39] «Pendebat in cruce Filius, Mater se persecutoribus offferebat. Si hoc solum est, ut ante Filium prosteneretur, laudandus pietatis affectus, quod superstes Filio esse nolebat: sin vero ut cum Filio moreretur, cum eodem gestiebat resurgere, non ignara mysterii, quod genuisset resurrecturum» (Santo Ambrósio, De institutione virginis, c. 7, PL 16, 293) [N.T.: «Pendia na cruz o Filho, a Mãe oferecia-se aos perseguidores. Se isto era somente para se prostrar diante do Filho, é digno de louvor o seu afecto de piedade, porque não queria sobreviver ao Filho. Se porém era para morrer com o Filho, desejava alegremente ressuscitar com ele, bem ciente do mistério, porque tinha gerado Aquele que havia de ressuscitar»].

[40] Um texto muito mais arcaico que o «Transitus» do Pseudo-Melitão é o publicado recentemente por Monika Heiback-Reinisch, Ein neuer «Transitus Mariae» des pseudo-Melito. Textkritische Ausgabe und Darlegung der Bedeutung dieser ursprungliecheren fur Apokryphenforschung und lateinische und deutsche Dichtung des Mittelaltters. Roma, Pontificia Academia Mariana Intern., 1962, XIX 337 p. (Bibliotheca Assunptionis B. Virginis Mariae). A autora reconstruiu esta revisão latina do «Transitus S. Mariae» com base em 15 códices (do século XI ao XV) muito diferente daquela «recepta» apresentada por Tischendorf (cfr. Montagna D.M. OSB, Notas críticas do «Transitus S. Mariae» do Pseudo-Melitão, in «Marianum», 27 (1965) p. 177-187.

[41] Os argumentos aqui apontados em favor da antiguidade do «Transitus Mariae» do Pseudo-Melitão podem encontrar-se desenvolvidos em Faller O., op. cit., p. 56-59.

[42] Cfr. Tischendorf C., Apocalypses Apocryphae, Leipzig, 1866, p. 124-136.

[43] Tischendorf C., Apocalypses Apocryphae Mosis, Esdrae, Pauli, Joannis. Item Mariae dormitio, additis avangeliorum et actuum apocryphorum supplmentis, Lipsiae 1866. Os códices usados por Tischendorf foram escritos entre os séculos XI e XVI. O Pe Jugie, ao contrário – mas por ideias preconcebidas – fá-los remontar ao século VI (550-586). Uma boa tradução italiana pode encontrar-se em Bonnaccorsi G., Evangelhos Apócrifos, I, Florença 1948, p. 261-289). Servimo-nos desta tradução.

[44] No códice B, fala-se do «corpo», não de «restos» de Maria. O códice B assinala com maior probabilidade a leitura primitiva. Assinala com efeito a leitura mais breve («Lectio brevior, probabilior»). O corpo da Virgem – segundo o códice B – foi transportado ao Paraíso, com os Apóstolos, sem ter sido colocado primeiro no túmulo.

[45] Jugie M., A morte e a Assunção…, p. 119-120.

[46] Cfr. De Vulpens J., O Paraíso terrestre no terceiro céu, Paris-Friburgo 1925; Ricciotti G., O Apocalipse Siríaco de Paulo I; Introdução, tradução e comentários, Brescia 1952; II: A cosmologia da Bíblia e a sua transmissão até Dante, Brescia 1932, p. 89-120. Estes autores apresentam semelhantes testemunhos que demonstram que o Paraíso, isto é, o Éden, não estava localizado sobre a terra, não no Céu.

[47] Heiler Friederich, O desenvolvimento histórico do dogma da Assunção corpórea de Maria ao Céu. In «Protestantesimo» 6 (1951) p. 7.

[48] Note-se um detalhe particularmente significativo: o corpo de Maria – diz-se ali – foi levado para debaixo da árvore da vida no Paraíso. Segundo o Génesis, a Árvore da vida estava no meio do Éden, ou do paraíso terrestre e era aquilo que teria permitido viver, com os seus frutos, indefinidamente (Gen. 2, 9 e 3, 22). O autor do apócrifo dá por isso a entender aos seus leitores que a Virgem – nova Eva – recuperou o privilégio perdido pela primeira Eva. A ideia de Maria «nova Eva» devia partir do «círculo joânico da Ásia Menor» (cfr. Cechelli C., Mater Christi, vol I, p. 3 ss., 7-10; 119-122). Maria, de facto, com a sua cooperação na obra redentora de Cristo (novo Adão), recuperou o que Eva tinha perdido. É lógico, portanto, que tenha sido colocada debaixo da árvore da vida. Acerca da árvore da vida, ver Vattioni F., A árvore da vida, in Augustinianum 7 (1967) p. 133-144.

[49] Wright W., Contribuição da literatura apócrifa, Londres (1865), Introdução, texto, tradução, p. 42-51, 11-16.

O protestante Friedrich Heiler dá a entender aos seus leitores que o fragmento siríaco publicado por Wright limita-se ao «motivo lendário» do desaparecimento do corpo de Maria, semelhante ao desaparecimento do corpo de São João (art. cit. p. 8-9).

[50] Capelle B., Vestígios gregos e latinos de um antigo transitus da Virgem, in «Analecta Bollandiana» 57 (Mélanges Paul Peeters I, 1949) p. 21-48).

[51] Wenger A., A.A., Fé e Piedade Marianas em Bizâncio, in «Maria» do P. Du Manoir, vol. V, Paris 1958, p. 932.

[52] Wenger A., loc. cit. p. 935.

[53] O Professor C. Cecchelli, falando do texto do qual depende o «fragmento Wright», localiza-o no século III; «mas não rejeitamos a hipótese – acrescenta – de fixar-lhe as origens no século II», isto é, no «Transito do Pseudo-Lêucio Carino (cfr. Cecchelli C., Mater Christi, III, Roma, 1954, p. 397-398). E noutro lugar: «Contudo, ao quer julgar-se que o fragmento Wright é muito antigo (está num manuscrito do século V e tem, como nos parece, a inclusão de uma história do século III ou mesmo do século II), o facto é que reflecte uma concepção que bem se pode fazer remontar ao património dos joânicos da Ásia Menor. Parece portanto razoável perguntar: embora não apresentando os fantásticos desenvolvimentos que pôde engendrar um contador de histórias herege (Lêucio Carino), será que a convicção de que fora concedida a Maria a assunção corpórea existia nos joânicos do início do século II?» (op. cit. p. 414). É mais ou menos a mesma conclusão a que eu próprio cheguei, antes de ler esta insuspeita confirmação na obra do inesquecível amigo Prof. Cecchelli.

[54] Bedjan P., Sancti Martyrii, qui et Sahdoma, quae supersunt omnia, syriace. Accedunt Homiliae Mar Jacobi in Jesum et Mariam, syriace, Leipzig, 1902, p. 709-719.

[55] «Astitit divinorum illa turma prophetarum, et cum eis Apostoli et Evangelistae nec non doctores, et exequiis peragunt virginalis corporis Benedictae, ut abiret in (paradisum) Eden, plenum beatitudinis divinae» (vv. 91-94).

[56] Jugie M., A morte e a Assunção, p. 85.

[57] In «Studia Sinaitica», I, 1902, p. 59-61.

[58] É preciso ter presente, porém, que quando o Natal começou a celebrar-se no dia 25 de Dezembro como celebração diferente da Epifania (6 de Janeiro), também a comemoração de Nossa Senhora começou a celebrar-se no dia 26 de Dezembro, ao passo que a festa de «Nossa Senhora das sementes» primeiro ficou no dia 6 de Janeiro e depois foi transferida para a oitava da Epifania (15 de Janeiro).

[59] Miegge J., A propósito do dogma da Assunção. I. Teologia e símbolo do culto da Virgem Maria. In «Protestantesimo» 6 (1951) p. 25-26.

FONTE
ROSCHINI, Gabriele M. L’Assunzione di Maria SS. nei primi cinque secoli dell’èra cristiana, in Renovatio 2 (1967), pp. 589-608.

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