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As canonizações e a infalibilidade pontifícia

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A Igreja é infalível ou não ao elevar um fiel à honra dos altares? Essa dúvida levanta outras questões que requerem um estudo mais aprofundado.

“Pio II canoniza Santa Catarina de Siena”, por Bernardino di Betto - Museo dell’Opera del Duomo, Siena (Itália) Foto: Reprodução

“Pio II canoniza Santa Catarina de Siena”, por Bernardino di Betto – Museo dell’Opera del Duomo, Siena (Itália) Foto: Reprodução

Redação (21/11/2024 09:48, Gaudium Press) A santidade é o ideal comum a todo cristão nesta terra, pois por meio dela nos são abertas as portas do Céu. Assim, em sua solicitude pastoral corresponde à Igreja não só proporcionar os meios para obtermos a bem-aventurança, como também nos apresentar modelos de vida proba, o que constituiu um papel primordial na missão que lhe foi conferida pelo Divino Redentor.

Este último ponto compete de modo particular ao Sumo Pontífice, o qual tem a responsabilidade de ser o juiz supremo para proclamar a santidade de vida e a eficácia da intercessão daqueles que se destacaram pela prática heroica das virtudes e pelo seu testemunho de fé, consumado, por vezes, no ato do martírio. Contudo, essa praxe nem sempre foi exatamente assim.

O culto aos mártires

Nos dias de hoje, parece-nos normal que seja o Papa quem proclame a santidade deste ou daquele Servo de Deus e que o apresente como modelo e intercessor. Nos primeiros séculos da Igreja, porém, quando o dogma da infalibilidade pontifícia estava ainda muito longe de ser definido, os “processos” de canonização davam-se de forma mais rápida e simples.

Reunidos no interior de uma catacumba, os primeiros cristãos rezavam em torno do corpo do último mártir que entregara a sua vida em defesa da Fé. Ainda no dia anterior, aquele santo varão ou aquela casta jovem encontrava-se entre eles, orando e assistindo às Missas ocultamente, sem que o poderio romano o soubesse. Naquele momento todos acreditavam estar ele no Céu, mas sua presença se fazia sentir a seus irmãos, dir-se-ia até mesmo que nunca fora tão próxima.

Assim, de modo inteiramente orgânico, se instituía a devoção a mais um Santo naqueles longínquos primeiros séculos de perseguição à Igreja nascente.

Exaltando outras formas de santidade

Os anos se passaram e, com eles, também as perseguições. Desse modo, o martírio já não era a única forma de santidade reconhecida pelos fiéis. Primeiramente se começaram a venerar os confessores da Fé: aqueles que, tendo sofrido as torturas próprias aos mártires, foram considerados mortos por seus carrascos ou libertados antes do trânsito final. Tratava-se de homens e mulheres que levavam em seus corpos, pelo resto da vida, o preço de sua perseverança: a falta de um membro ou as cicatrizes dos tormentos padecidos.

Os Bispos que mais se destacaram por sua união com Deus viram-se logo acrescentados no rol dos bem-aventurados, como mostra de gratidão de seus filhos espirituais por seu exemplo e sua conduta. Com efeito, é a estes primeiros pastores que devemos em grande parte a expansão da Igreja e o estabelecimento das bases da doutrina católica.

Logo se acrescentaram também a essa lista monges e eremitas, reis e nobres, virgens e mães de família, que paulatinamente constituíram o extenso e magnífico catálogo dos Santos venerados nesta ou naquela região, e alguns em toda a Igreja, sem que o Papa houvesse feito uma canonização sequer!

“Vox populi, vox Dei”

Até então as canonizações se davam por aclamação do povo, em função da fama de santidade de um batizado, à qual o Bispo se associava, em geral transladando a uma igreja os restos mortais daquele que deixara na memória de todos atos exemplares de virtude, dignos de imitação, e instituindo alguma oração litúrgica especial por ele.

O costume das canonizações populares se estendeu até o século XVII. Somente aos poucos se reservou a proclamação de um novo bem-aventurado ao Romano Pontífice. Para se ter uma ideia, basta mencionar que uma das primeiras canonizações feitas por um Papa foi a de Ulderico, Bispo de Augusta, declarado Santo por João XV apenas no século X!

Será Urbano VIII quem, no ano de 1634, porá termo irrevogavelmente às canonizações populares, reservando ao Sucessor de Pedro este sublime encargo.

Canonizações duvidosas

Assim se deu a longa trajetória do culto aos Santos até chegar à forma em que o conhecemos hoje. Contudo, apesar da progressiva institucionalização das canonizações, algumas vezes houve devoções questionáveis a pessoas falecidas, cujas vidas nem sempre foram devidamente analisadas.

Em um de seus documentos, o Papa Alexandre III lamentava-se de que se venerasse, em certa região, um falecido que fora “martirizado” enquanto se encontrava ébrio. Outros ainda recebiam veneração sem jamais terem existido. Este é o caso, por exemplo, de “São Viar”, cultuado na Espanha após ter sido encontrada na parede externa de uma antiga igreja a inscrição deteriorada de “S VIAR”. Muitos anos se passaram até que a tal placa foi reconstituída, descobrindo-se assim seu significado original: “præfectuS VIARum”, que se referia provavelmente ao responsável pelas vias públicas…

Ademais, o que dizer daqueles falecidos venerados somente em algumas regiões ou por certos institutos? Qual o motivo de a Igreja proibir seu culto público em âmbito universal? Por exemplo, sabe-se que entre os anos de 1209 e 1500 contavam-se 965 franciscanos venerados em nível local ou restrito, isto é, somente por sua Ordem ou mosteiro. A devoção a muitos deles, entretanto, nunca foi confirmada pela autoridade eclesiástica.

Ora, depois dessas considerações, muitas perguntas quiçá estejam povoando nosso espírito… Como explicar todos esses casos? Que segurança posso ter de que meu padroeiro realmente esteja no Céu? Que valor tem uma canonização? A Igreja é infalível ou não ao proclamar um Santo?

O valor dogmático das canonizações

A verdade é que a questão permanece em aberto, uma vez que os Papas nunca se pronunciaram de forma definitiva sobre o assunto. Assim sendo, podemos encontrar elementos para responder a essas perguntas apenas nos debates teológicos.

Antes de mais nada, cabe indagar: em que ocasiões um Papa é infalível? A Constituição dogmática Pastor Æternus aclara que somente “quando, no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica que determinada doutrina referente à fé e à moral deve ser sustentada por toda a Igreja”. E o Catecismo recorda um detalhe que fazemos questão de destacar: “Esta infalibilidade abarca tudo quanto abarca o depósito da Revelação Divina”.

Trata-se dos chamados pronunciamentos ex cathedra, muito diferentes de uma homilia ou catequese, as quais não se revestem do caráter infalível, ainda quando proferidas pelo Papa. É o que ocorre, por exemplo, na proclamação de um dogma, como da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, que deve ser crida por todos como verdade de fé revelada, definida e infalível, uma vez que declarada como tal pelo Santo Padre.

Ora, isso nos leva a outra questão: as canonizações enquadram-se no âmbito dos pronunciamentos ex cathedra? Elas fazem parte das verdades reveladas ou daquelas necessárias para guardar e expor fielmente o depósito da Fé?

Antes de responder, cabe considerar que as canonizações abarcam dois aspectos. O primeiro é um princípio geral: a certeza de que todo aquele que, seguindo o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, pratica as virtudes em grau heroico recebe a coroa da bem-aventurança, o que significa obter a salvação eterna. O segundo, a aplicação desta regra aos casos concretos, ou seja, a proclamação de que este ou aquele homem determinado esteja no Céu.

E se um Santo não estiver no Céu?

É fácil demonstrar que o primeiro aspecto – o geral – está contido na Revelação, visto que assim nos foi prometido por Jesus Cristo. Entretanto, pode-se afirmar o mesmo quanto à sua aplicação aos indivíduos? Se um canonizado não estivesse realmente no Céu, haveria algum dano grave ao depósito da Fé?

Para alguns teólogos, apesar do aspecto desagradável que este fato traria necessariamente consigo, ele não resultaria, contudo, em grave prejuízo para o dogma católico. A adesão a uma doutrina avessa à Fé, sim, seria motivo de condenação para os membros da Igreja, mas o culto a um Santo duvidoso não traria sérios riscos, pois a veneração equivocada que lhe renderíamos se dirigiria a ele apenas enquanto o cremos na condição de amigo de Deus.

Ademais, nossas orações não se veriam prejudicadas ao recorrer à sua intercessão, uma vez que têm ao Senhor como fim último e principal. Na falta do mediador, Deus as aceitaria diretamente. Claro está que isto não é razão para rejeitarmos as valiosas intercessões dos Santos, os quais rogam por nós sem cessar.

A posição de São Tomás de Aquino

Muitos séculos antes da proclamação do dogma da infalibilidade pontifícia e até mesmo da regulamentação dos processos de canonização, São Tomás de Aquino já fora interrogado a respeito da relação entre ambos. Todavia, ele se mostrou tão prudente na matéria que seus argumentos são utilizados tanto por aqueles que defendem a infalibilidade das canonizações quanto por aqueles que a questionam. Por isso, nada melhor do que recorrermos às suas palavras, na única menção que o Doutor Angélico faz sobre o assunto.

Com a sabedoria que o caracteriza, São Tomás afirma haver duas situações distintas no que se refere ao juízo daqueles que presidem a Igreja: de um lado, as declarações acerca das verdades de Fé, como os dogmas; de outro, os pronunciamentos feitos pelo Papa sobre fatos particulares, ou seja, sobre assuntos humanos. O Doutor Angélico ressalta serem as primeiras fruto de uma intervenção divina e, portanto, não devemos ter dúvida de sua veracidade. No segundo caso, porém, pode haver erro.

Ora, “a canonização dos Santos se encontra entre essas duas situações”. Quando o Pontífice eleva um falecido à honra dos altares, ele se certifica de seu estado por meio de uma investigação sobre sua vida e seus milagres, mas, sobretudo, mediante um “instinto do Espírito Santo”. Donde o Aquinate conclui: “Deve-se acreditar piamente que nisto o juízo da Igreja também não pode errar”.

Note-se que o próprio São Tomás se abstém de emitir um juízo absoluto em assunto tão delicado. Apesar de não dizer serem infalíveis as canonizações, afirma que devemos crer como certas, visto que o Divino Espírito Santo vela para que a Igreja não se equivoque.

Portanto, não há motivo para termos sobressaltos acerca de nossas devoções somente porque nunca nenhum Papa declarou serem as canonizações uma aplicação do carisma de infalibilidade. Ao contrário, o próprio Deus Se encarrega de que a Santa Igreja cumpra sem erros com sua a missão de apresentar modelos de virtude aos seus filhos. E Ele mesmo recebe com agrado nossas súplicas, pois é, antes de tudo, nosso Pai.

Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 275, novembro 2024. Por Lucas Jean Pacheco.

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