InícioNotícias da IgrejaO Tradutor de Deus: São Jerônimo

O Tradutor de Deus: São Jerônimo

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Comemora-se, neste 30 de setembro, 1600 anos da morte de São Jerônimo. Mas, quem foi esse santo? O que é a Vulgata? Por que São Jerônimo era violento?

Redação (29/09/2020 16:18, Gaudium Press) O presente nem sempre julga com justiça o passado. Quando olhamos os séculos que nos precederam para avaliar um personagem, uma instituição, um fato ou uma situação, movimentos muito diferentes podem nos assaltar: ora atuamos com indulgência, ora com rigor.

Se é verdade que o tempo cura todas as feridas, também é certo que o relógio dos séculos faz-nos esquecer as falhas alheias e esfriar os ânimos. É mais fácil perdoar uma ofensa no dia seguinte à discussão, do que no calor da refrega.

Entretanto, o tempo alimenta rancores também, e às vezes uma réplica espera, pacientemente, decênios. A vingança é um prato que se come frio… Misérias do homem!

O tempo pode, portanto, alterar a verdade sobre o passado, quando sobre estes fatos deitamos diferentes luzes: indulgência, rigor, admiração, inveja, amor, ódio, indiferença.

E quando o presente analisa os personagens de outrora, estes mesmos sentimentos podem agir. Neste caso – avaliar os homens antigos – os erros serão ainda maiores, porque frequentemente somos levados a julgá-los fora de seu contexto histórico, com nossos olhos contemporâneos, com nossas falhas contemporâneas.

Portanto, o estudo da História é relativo?

Não. Mas ele não pode ser feito por espíritos superficiais.

Vejamos um pouco a história de São Jerônimo. Com frequência, ouve-se aqui, lá e acolá críticas severas contra São Jerônimo. Atacam seu temperamento, sua obra e seu legado. Será justo este julgamento?

Biografia de São Jerônimo

“Jerônimo, filho de Eusébio, nasceu na cidade de Stridum, a qual foi depois destruída pelos godos, e que se encontrava outrora nos confins da Dalmácia e da Panônia”.

É difícil reescrever a vida dos homens dos primeiros séculos do Cristianismo. Estamos em outros tempos, no qual os registros de nascimento estão ainda longe de existir. No caso de São Jerônimo, porém, ele deixou-nos muitas pistas, pois redigiu uma pequena autobiografia no seu livro De viris illustribus.

O santo veio ao mundo, provavelmente, perto do ano 347. Ele mesmo deixa a entender que era de família cristã, pois disse que fora “alimentado com leite católico”.

De sua infância, quase nada nos chegou.

Perseguição e Batismo

Entretanto, a perseguição de Juliano, em 362, deu ocasião a Jerônimo de manifestar seu temperamento e sua Fé.

Naqueles tempos, o Batismo não era ministrado às crianças, mas o costume era conferi-lo somente aos adultos. Ora, quando as leis do imperador começaram a fechar o círculo em torno dos católicos, e os ritos pagãos voltaram à luz, Jerônimo, que neste período estudava em Roma, pediu que fosse banhado nas águas regeneradoras. Gesto corajoso, desafiador e sublime.

O edito de Juliano, num primeiro momento, proibiu que os católicos ensinassem. Apenas mais tarde é que se desencadearam perseguições violentas. Ora, ao pedir o Batismo, Jerônimo colocava em risco: primeiro sua carreira; mais tarde, sua vida.

Felizmente, o flagelo Juliano foi de curta duração, pois em 363 morreu o imperador em campo de batalha contra os persas.

Monge e secretário do Papa

A vida contemplativa atraía São Jerônimo. Depois de uma experiência religiosa com alguns amigos, nosso Santo partiu para os desertos da Síria para viver com os anacoretas.

Foi nesse período que Jerônimo começou a manifestar seu raro dom em aprender idiomas. Latim, grego, celta, hebraico, aramaico… Nenhuma língua apresentava-lhe dificuldade, e em pouco tempo assimilava-as como se as tivesse aprendido do berço.

Viajou pelo Oriente, a Jerusalém, Antioquia – onde foi ordenado – e Constantinopla. Conhecia mais e estudava mais. Sua paixão eram as Sagradas Escrituras.

Em 382 estava novamente em Roma, ao lado do Papa Dâmaso. O pontífice, admirado pelos dons de Jerônimo, confiou-lhe uma tarefa titânica: elaborar uma versão latina da Bíblia. Este seria o trabalho de sua vida.

Junto à gruta da Natividade

Morto São Dâmaso, Jerônimo fixou-se em Belém, onde fundou um mosteiro. Ali ficou até o fim de seus dias, quando já passara dos 70 anos.

Sua obra é vastíssima. Além da Vulgata (da qual trataremos a seguir), São Jerônimo tem inúmeros comentários exegéticos, vários textos espirituais, um carteio monumental e… muita polêmica doutrinária.

É um dos 4 “Doutores da Igreja Latina”, padroeiro dos tradutores e dos exegetas.

A Vulgata

 A Doutrina Católica está solidamente assentada sobre as Sagradas Escrituras. O Antigo Testamento aponta para Nosso Senhor, e o Novo conta-nos como era e o que ensinou o Deus Encarnado.

Ora, os evangelhos e as cartas dos apóstolos foram escritos em grego, pois este era o idioma comum no Oriente. O Antigo Testamento também conhecia uma versão helena, chamada a dos 70, a septuaginta.

Porém, se para nós o grego é um idioma estranho, naquela época era o inglês do século XXI. Depois que Roma anexara a Grécia, os filhos da loba passaram a ser bilíngues. A língua de Virgílio e a de Homero eram faladas igualmente, no Capitólio, no Palatino, como em toda Urbs. Assim, nos primeiros séculos de nossa era, a difusão das Sagradas Escrituras fez-se sem dificuldade.

No século IV, todavia, a situação não era a mesma. Depois de Constantino, operou-se uma separação paulatina entre Ocidente e Oriente, o grego deixou de ser comum. E para que os livros sagrados pudessem ser compreendidos, começaram a aparecer por todo o império traduções latinas.

A variedade prejudica a unidade. E em matéria de doutrina, só deve haver unidade, porque a Verdade não é multiforme. Se a Verdade é maquiada, disfarçada ou alterada, ela se torna disforme e… enganosa.

São Dâmaso compreendia o perigo e encomendou a São Jerônimo uma versão latina das Sagrada Escrituras.

Contudo, o Papa quis primeiro avaliar as qualidades de seu secretário.

Defendendo a Virgindade de Maria

Por estes anos, um certo Helvidius de Milão, ariano, escreveu uma obra atacando a virgindade perpétua de Maria. Dizia ele que, segundo as escrituras, é evidente que Nossa Senhora teve outros filhos depois de Jesus. Alega para isso que o evangelho alude diversas vezes aos “irmãos de Jesus”, e, em São Lucas, Nosso Senhor é chamado de “Primogênito”.

São Jerônimo conhecia não somente a língua hebraica e grega, mas ainda os costumes desses povos. Ora, para compreender a fundo a História Sagrada, é preciso entender como pensavam os antigos. São Jerônimo defendeu a virgindade de Maria com ardor:

“Todo filho único é primogênito. Todo primogênito não é filho único. É-se primogênito não precisamente porque outros vêm depois de si, mas porque ninguém o precedeu” (Contra Helvidius, 12).

No que diz respeito aos “irmãos do Senhor”, explicou ele que, na Judeia, assim como em todo o território da bacia Mediterrânea, era costume empregar a palavra “irmãos” para designar todos os parentes varões da mesma geração, ou de idade próxima, como primos, por exemplo. O evangelho deixa claro que eles não são “irmãos” uterinos de Jesus, porque nunca os designa como “filhos de Maria”.

Alguns comentadores diziam que São José tivera filhos num casamento anterior ao de Maria. Os “irmãos do Senhor” seriam, então, meios-irmãos de Jesus. São Jerônimo – ele é o primeiro a rebater isso! – afirmou que isso não podia ser assim, pois São José era jovem quando desposara Nossa Senhora e que, como Ela, fizera voto de virgindade para toda a vida.

Traduzir da língua original

O grande anseio de São Jerônimo era traduzir as Sagradas Escrituras tendo por base o texto na língua original. Por isso, quis ele, além de revisar e corrigir as traduções já existentes, tomar textos em hebraico para fazer a sua versão.

Isso nem sempre foi fácil.

Quando São Jerônimo traduziu o livro de Tobias, já estava vivendo em Belém. Para obter um texto base, conseguiu de um judeu que guardava a Sinagoga que lhe emprestasse o mencionado livro durante a noite, a fim de que os outros israelitas não soubessem. Resultado: São Jerônimo traduziu toda a história de Tobias e do Arcanjo São Rafael em UMA NOITE!

A obra de São Jerônimo foi colossal. A Vulgata, ou seja, “a versão comum”, “a versão do povo” foi oficializada e durou 16 séculos.

Críticas a São Jerônimo

Certa vez, ouvi que em determinado mosteiro europeu, os religiosos se indignavam com São Jerônimo, quando suas cartas eram lidas durante as refeições monacais. Segundo eles, o santo doutor era muito violento e iracundo. Isso aconteceu no início do século passado.

Quem lê a correspondência de São Jerônimo e seus comentários exegéticos pode, por vezes, não entender algumas de suas atitudes. Não compreendendo, corremos o risco de julgá-lo com nossos critérios contemporâneos. E para julgar os outros, somos sempre inflexíveis.

São Jerônimo viveu numa época bastante diferente da nossa. A Igreja recém saída das catacumbas já teve de enfrentar outra luta: as heresias. Ela necessitava, agora, matizar suas crenças, definir seus dogmas, expurgar erros. Uma geração não foi suficiente para essa tarefa, pelo contrário, foram necessários séculos, durante os quais os concílios se sucederam às discussões, os santos doutores aos hereges, a imprecisão da doutrina à clareza da definição…

Enfim, mas para isso era preciso que homens da envergadura de São Jerônimo lutassem. E lutassem corajosamente. Não era raro que figuras sábias resvalassem e desabassem, repentinamente, sob o peso do erro, como Orígenes ou Tertuliano. E assim aqueles que detinham a verdade, inspirados pelo Espírito Santo, precisavam ser inflexíveis, intransigentes e, por vezes, violentos.

A Verdade é como a água. Só é salutar se é pura. Se alguém derrama imperceptíveis gotas de veneno nesse líquido precioso, ainda que se dissolva no volume cristalino, o conjunto todo se torna maléfico e mortal.

São Jerônimo compreendia tudo isso. E este homem, que por vezes é chamado de “Tradutor de Deus”, queria que a Fé católica permanecesse límpida, pura e salutar.

 

Por Paulo da Cruz

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