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Canaletto, o pintor de Veneza e de uma Civilização

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Só é capaz de compreender o valor atual da fantástica e mimosa Veneza quem já teve a oportunidade de maravilhar-se com a grandeza que a Sereníssima sustentou no passado, marcadamente até o séc. XVIII. Mas é possível o retorno a este glorioso passado onde sequer existia a técnica fotográfica?

Redação (07/12/2020 17:36, Gaudium Press) Giovanni Antonio Canal abriu os olhos para o mundo no dia 18 de outubro de 1697, na paróquia de San Lio, próxima à famosa ponte do Rialto, em Veneza.

Espírito criativo, borbulhante, perspicaz, original, ou seja, veneziano, nasceu em berço de artista: seu pai, Bernardo Canal, cenógrafo e decorador, ganhava a vida nos bastidores de importantes teatros europeus. Foi no ateliê da casa de seu progenitor que o pequeno Canal, apelidado Canaletto, aprendeu a pintar. Tão rápido conformou-se aos pincéis que, em pouco tempo de aprendizado, já o vemos a decorar, junto ao pai, os teatros Sant’Angelo e San Cassiano, em Veneza, e, em 1720, o Teatro Capriciana, em Roma.

Ser cenógrafo não era pouca coisa. Talvez se pensasse que a cenografia estava situada para além da arte, no terreno da magia ou do milagre, de tal forma ela encantava e ludibriava os telespectadores, extasiados diante dos cenários fascinantes que emergiam do mundo das fábulas e pareciam tocá-los, fazendo-se realidade.

Além dos diversos conhecimentos exigidos por tal profissão, como o da engenharia, para pender cortinas e erguer estruturas; o da marcenaria, para construir verdadeiras cidades sobre palcos imensos; o da pintura para abrir céus em tetos fechados e simular horizontes distantes por debaixo dos arcos e através das frestas das portas, o predicado essencial de um cenógrafo era, sem dúvida, a genialidade, esse dom gratuito que faz do sonhador um realizador, capaz de fazer descer, do paraíso para o mundo do vivos, maravilhas impensáveis.

O início de sua carreira

Antonio Canal cedo decidiu-se a não seguir o mesmo caminho que o pai, mas, aproveitando-se de tudo quanto aprendera junto a ele, lançou-se no mundo da pintura, atraído pela formosura das ruínas romanas, e, mais tarde, pela grandeza graciosa de sua cidade natal.

Perspicaz observador da realidade, das perspectivas, das cores, dos tipos humanos, aquele jovem não perdia tempo, seduzido por cada ângulo novo que encontrava. A grandes passos, cruzava a multidão assustada como um vento ágil e impetuoso, com um caderno pressionado sob o braço e uma pena em punho. Tinha estatura média, cabeleira abundante à moda da época, feições arredondadas, alguns traços esguios, olhar vívido, espírito enérgico e empreendedor, mas gentil e delicado, como nos sugere a gravura de seu retrato, por Antonio Visentini.

Andava por todas as partes, ruas, ruelas, janelas, terraços e telhados de Veneza, aquela velha cidade cansada, mas ainda formidável e graciosa, cujas estaturas e extensões conhecia tão bem quanto a planta da sua casa. É sabido que o apogeu esplendoroso da Sereníssima tinha ficado para trás, pois, naquele século XVIII, já não era a esbelta dominadora da economia marítima que posava para os talentos daquele artista promissor, cheio de esperanças no futuro de sua carreira, mas sim uma Veneza que, quanto mais dava sinais de decadência militar e econômica, mais multiplicava, despreocupada, suas opulentas festas. O famoso Carnaval, por exemplo, com seus bailes mascarados e seus desfiles multicoloridos, faustosos e heterogêneos, onde reuniam-se importantes patrícios e simples gondoleiros, era um espetáculo conhecido em todo o mundo civilizado, que “durante seis meses atraia a Veneza uma afluência de estrangeiros, atingindo o número de 30.000 pessoas”.[1]

Junto ao seu sobrinho, Bernardo Belotto[2] – que mais tarde faria grande nome na Áustria, Alemanha e Polônia – Canaletto realizou suas primeiras obras. Até hoje, não se conhece quem é o verdadeiro autor de algumas pinturas desta época inicial de sua carreira, se ele ou Belotto, visto que o estilo do sobrinho se assemelhava muito ao seu.

As obras de Canaletto – telas à óleo, gravuras e aquarelas – começaram a fazer fama no mundo da arte – o que sobremaneira significava, naquele tempo, no mundo do comércio – e não tardou para que ele fosse reconhecido por muitos mecenas como um dos maiores representantes do vedutismo,[3] como nos narram testemunhos da época.

A Veneza de Canaletto

Como se não bastasse seu excelente gênio artístico, os temas escolhidos por Canaletto faziam de si a originalidade de seus quadros. Na maior parte das vezes não procurava mais que a Veneza “de todos os dias”,[4] com sua simplicidade, com seu charme, com as lembranças de sua grandeza, impressa em cada parede, arco, coluna e janela.

O observador detido alguns instantes diante de suas telas fica seduzido e quase forçado a caminhar pelo universo de minúcias da composição, e por pouco não começa a ouvir o burburinho da feira, os gritos dos gondoleiros, os teatros ao ar livre e o ladrar de algum cachorro solto a passear pelos vendedores ambulantes. Conservam-se ainda hoje as páginas de seu caderno, onde podemos contemplar uma coleção riquíssima de personalidades, tomadas ao vivo, as quais ele “catalogava” para utilizar nas suas diversas paisagens, enquadrando-as onde quisesse.

Mas é verdade também que Canaletto soube pintar os dias de festa e solenidades, ora civis, ora religiosas, como ninguém logrou fazer. Seu pincel foi capaz de transmitir de forma singular algo da pompa, da vivacidade, da alegria que inundava Veneza naqueles dias de celebração – os quais, a bem dizer, não eram poucos, pois “a eleição de um doge, a notícia de uma vitória, a visita de um príncipe estrangeiro, tudo servia de pretexto para organizar esse espetáculo cuja encenação era realmente maravilhosa”.[5]

Uma das suas mais famosas composições representa o dia solene no qual, a cada ano, na data da Ascensão, o doge de Veneza renovava o chamado “matrimônio” da Sereníssima com o mar, por meio do desfile náutico do Bucentauro – grande navio, sem mastros nem velas, todo revestido de ouro – acompanhado de incontáveis barcos de todas as formas e tamanhos que o gênio humano pode ousar, acrescido da variedade humana ainda mais rica.

Dez anos na Inglaterra

No séc. XVIII era grande a afluência de jovens da aristocracia britânica em Veneza. Tornaram-se logo uma clientela fecunda para Canaletto, fazendo com que sua fama, já crescente em sua cidade natal, começasse a espalhar-se também dentre a nobreza Inglesa que passou a encomendar seus quadros. Não podiam conceber que alguém alcançasse sobre tela tamanha precisão, realismo e beleza. Joseph Smith, cônsul britânico, muito amante das artes, encomendou e comercializou muitíssimos quadros de Canaletto e falou em seu favor junto aos ingleses.

O grande acontecimento da época em Londres serviu, mais de uma vez, de tema a seu pincel: a construção da ponte de Westminster, a segunda a ser edificada sobre o célebre rio Tâmisa. Numa das vistas pintadas por Canaletto, Londres vista através de um arco da ponte de Westminster, o bom observador poderá contemplar, não sem certa curiosidade, um detalhe: um balde pendente, em primeiro plano, por uma corda, sobre toda a paisagem. Jamais passaria pela cabeça de um inglês acrescentar um detalhe tão inesperado, mas para quem conhecia o estilo do italiano, aquilo não representava nenhuma surpresa: estava sempre à procura de acidentes pitorescos.

Hospedando-se de casa em casa, não lhe faltaram admiradores nem mecenas durante toda a sua viagem. Convidado por alguns nobres para as regiões mais campestres, longe da capital, pôde encontrar temas mais condizentes com seu luminoso e movimentado estilo, que talvez não se tenha acomodado muito bem com a neblina pálida e estática de Londres.

Retorno a Veneza e consumação de sua obra

Passados nada menos que dez anos de estadia na Inglaterra, Canaletto retorna a sua terra natal, por volta do ano 1755. Em Veneza, continua encontrando clientes entusiásticos, mas agora em menor número. Assim passou o resto de sua vida prestando serviços aqui lá e acolá, para este burguês ou aquele outro nobre, colecionando elogios e críticas, umas e outras sempre recebidas com sobranceria.

Pintou ainda muitas outras obras até que, aproximando-se do fim de sua carreira, foi aceito na Accademia veneziana di pittura e scultura, não sem dificuldade e mérito. Sua eleição, em setembro de 1763,[6] passou por calorosos escrutínios e foi muito discutida, já que o vedutismo era considerado uma arte de menor valor por ater-se demais à realidade.

Seu quadro de recepção foi aprovado pelas autoridades da pintura. Era um capriccio, estilo de pintura cujo tema procura mesclar realidade e ficção, diferente das vedute, com as quais estava mais acostumado. O quadro teve grande sucesso e foi exposto na praça de São Marcos em 1777, para honrar seu autor.[7]

A última obra que chegou até nós data de 1766. Representa um grupo de cantores no interior da basílica de São Marcos. Realmente impressionante pela beleza e precisão das linhas, pode-se ler na parte inferior sua assinatura e a seguinte observação: “realizado com 68 anos de idade, sem auxílio de óculos, no ano de 1766”.[8] Foram suas últimas palavras para a História, com o perfume próprio ao seu gênio e bom humor. Não se conhecem mais dados a respeito do fim de sua vida. Entregou sua alma a Deus no dia 19 de abril de 1768 e foi enterrado na Igreja de San Lio, em Veneza, e seu nome ficou unido para sempre ao daquela cidade encantadora.

Mas podemos afirmar que Canaletto não representou apenas a Veneza do séc. XVIII. Esta era, em seu requinte, uma espécie de síntese da Civilização Cristã, em tudo quanto havia produzido de belo e ordenado. Nosso pintor representou todo um mundo feito de bom trato, de polidez, de dignidade, da disposição orgânica e hierárquica de uma sociedade que em pouco tempo seria consumida pela voragem das revoluções sociais que aquele mesmo século viria a conhecer. Seus quadros, portanto, são um testemunho autêntico e convincente de tudo quanto o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo produziu de efeitos na sociedade temporal e que nos faz entrever tudo quanto os frutos da Redenção poderão ainda construir.

Por Gabriel Borges Bonfim


[1] MOUREAU, Adrien. Antonio Canal, dit le Canaletto. Les Artistes Célèbres. Paris: Librairie de L’Art, 1894, p. 10.

[2] Bernardo Belotto (1721–1780) foi mais tarde convidado pela imperatriz Maria-Teresa para a Áustria e pelo rei Estanislau Poniatowski para a Polônia. Seus quadros, ainda mais que os de seu tio, se caracterizaram pela precisão arquitetônica e geométrica, a tal ponto que após a Segunda Guerra mundial a cidade de Varsóvia pôde ser reconstruída graças às telas do pintor.

[3] O vedutismo é o nome com o qual ficou conhecido no séc. XVIII o gênero artístico também chamado de paisagismo, mas centrado em temas urbanos. Do italiano veduta, no plural vedute, significa vista, aquilo que se vê. Os vedutistas almejam muitas vezes a precisão e o realismo dos detalhes.

[4] BAETJER, Katharine; LINKS, J. G. Canaletto. The Metropolitan Museum of Art: New York. 1989, p.60.

[5] MOUREAU, op. cit., p. 50.

[6] BAETJER; LINKS, op. cit., p.267.

[7] Idem, p.276

[8] Idem, p.358

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