NA SEGUNDA EDIÇÃO do livro “Deus existe? ”, lançado pela editora Planeta, temos a transcrição do debate que ocorreu em 21 de fevereiro de 2000 entre o então Cardeal Joseph Ratzinger e o ateu Paolo Flores d’Arcais. Esse choque de ideias ocorreu em Roma e, devido à sua grandiosidade, quase duas mil pessoas tiverem que assistir às mais de 2h de debate do lado de fora do Teatro Quirino de Roma. Disponibilizamos aqui um texto de abertura do Cardeal Alemão, onde ele expõe – com sua genialidade característica – fatos importantíssimos para a compreensão do que realmente é o cristianismo (sinônimo da palavra catolicismo). Segue.
A pretensão da verdade posta em dúvida – a crise do cristianismo no início do terceiro milênio
No início do terceiro milênio, precisamente no âmbito de sua expansão original –, a Europa –, o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é consequência da crise de sua pretensão da verdade. Essa crise tem uma dupla dimensão: em primeiro lugar, questiona-se cada vez mais se é realmente oportuno aplicar o conceito de verdade à religião; em outras palavras, se é dado aos homens conhecer a autêntica verdade sobre Deus e as questões divinas. Para o pensamento atual, o cristianismo de modo algum está mais bem situado que as demais religiões. Ao contrário: com sua pretensão da verdade parece estar especialmente cego diante do limite de nosso conhecimento divino.
Todo este ceticismo frente à pretensão da verdade em matéria de religião se vê respaldado, ainda, pelas questões que a ciência moderna levantou sobre as origens e os conteúdos do cristianismo: com a teoria da evolução parece ter sido superada a doutrina da Criação; com os conhecimentos sobre a origem do homem, a doutrina do Pecado original; a exegese crítica relativiza a figura de Jesus questiona sua consciência de Filho (de Deus e logo Deus); a origem da Igreja em Jesus parece duvidosa etc. O fundamento filosófico do cristianismo se mostra problemático após o “fim da metafísica”, e seus fundamentos históricos são postos em xeque por efeito dos métodos históricos modernos.
Por isso, também é fácil reduzir os conteúdos cristãos ao simbólico, não lhes atribuir maior veracidade que aos mitos da história das religiões, vê-los como uma forma de experiência religiosa que se deveria situar com humildade ao lado de outras. Ao que parece, assim considerado, poder-se-ia permanecer cristão e continuar-se utilizando das formas de expressão do cristianismo; sua exigência, porém, transformou-se radicalmente: a Verdade, que era uma força vinculadora e uma promessa segura, transforma-se em uma forma de expressão cultural do sentimento religioso geral que nos cabe por causa de nossa origem europeia.
Como isso é assim, é preciso levantar novamente a questão já antiga da verdade do cristianismo, por mais supérflua e difícil de responder que pareça a muitos. Mas como? Sem dúvida, a teologia cristã deverá examinar cuidadosamente as diferentes instâncias que se levantaram contra a pretensão da verdade do cristianismo no âmbito da filosofia, das ciências naturais, da história, e terá de enfrentá-las. Mas, por outro lado, deverá tentar, também, obter uma visão geral da questão da verdadeira essência do cristianismo, de seu lugar na história das religiões e sua localização na existência humana.
Em suas origens, como o cristianismo contemplou seu lugar no cosmos das religiões? O surpreendente é que, sem hesitar, Agostinho atribui ao cristianismo um posto no âmbito da “teologia física”, do racionalismo filosófico. Esse fato implica uma evidente continuidade dos primeiros teólogos do cristianismo – os apologistas do século II – com relação ao lugar que Paulo atribui ao cristão no primeiro capítulo da Carta aos Romanos, que, por sua vez, se baseia na teologia da sabedoria do Antigo Testamento e, por meio dela, remonta ao escárnio dos deuses dos Salmos.
Sob essa perspectiva, o cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não das religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas, cuja justificação se encontra, afinal, em sua utilidade política, mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as ideias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera. Portanto, a fé cristã não se baseia na poesia nem na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento. Venera esse Ser que é o Fundamento de tudo o que existe, o “Deus verdadeiro”. No cristianismo, o racionalismo se tornou religião e não é mais seu adversário.
Partindo dessa premissa, uma vez que o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologização, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade, devia ser considerado universal e levado a todos os povos; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras, não como uma espécie de imperialismo religioso, mas como verdade que torna a aparência supérflua. E justamente por isso, na ampla tolerância dos politeísmos, deve ser considerado incompatível, até mesmo inimigo da “religião ateísmo”: não se limitou à relatividade e à possibilidade de intercâmbio de imagens, com o que perturbava principalmente a utilidade política das religiões e punha em perigo os fundamentos do Estado, em cujo âmbito pretendeu ser não uma religião entre outras religiões, mas sim o triunfo do conhecimento sobre o mundo das religiões.
Por outro lado, essa localização do cristão no cosmos da religião e da filosofia está relacionada também com o poder de penetração do cristianismo. Já antes do surgimento da missão cristã nos círculos eruditos da Antiguidade, havia se buscado na figura do “homem temeroso a Deus” a conexão com a fé judaica, que foi considerada a forma religiosa do monoteísmo filosófico e atendia ao mesmo tempo às exigências da razão e à necessidade religiosa do homem que a filosofia não podia atender por si só: não se reza a um deus que só existe no pensamento. Mas quando o deus que o pensamento descobre se encontra no interior de uma religião como deus que fala e age, então conciliam-se pensamento e fé.
Nessa relação com a sinagoga, ficava, porém, um aspecto não resolvido: o não judeu só podia ser, então, um profano, e nunca se integraria ao todo. Essa limitação é superada no cristianismo por meio da interpretação que Paulo fez da figura de Cristo. Só então o monoteísmo religioso do judaísmo se fez universal e, com isso, a união de pensamento e fé –, a religio vera –, à qual todos podem ter acesso. Justino, filósofo e mártir falecido em 167, pode ser considerado uma figura representativa dessa forma de chegar ao cristianismo como vera philosophia. Com sua conversão ao cristianismo, não renunciou às suas próprias convicções filosóficas, mas foi quando se tornou verdadeiramente um filósofo. A convicção de que o cristianismo era filosofia, a filosofia perfeita, ou seja, a Filosofia que chega até a Verdade, manteve-se vigente para além dos tempos dos Pais [Padres] da Igreja.
No século XIV, essa consideração é evidente na teologia bizantina de Nicolau Cabasilas. Certamente a filosofia não era entendida, então, como uma disciplina acadêmica puramente teórica, mas também, e acima de tudo, sob uma perspectiva prática, como a arte de viver e morrer com probidade a que só se pode chegar à luz da verdade.
A união de racionalismo e fé que ocorreu no desenvolvimento da missão cristã e na construção da teologia cristã introduziu, também, mudanças decisivas na imagem filosófica de Deus, dentre as quais cabe destacar duas em particular. A primeira consiste em que o Deus em que os cristãos acreditam e a quem veneram é, diferente dos deuses míticos e políticos, verdadeiramente natura Deus; nisso concorda com o racionalismo filosófico. Mas ao mesmo tempo também é válido outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus, “nem tudo que é natureza é Deus”. Deus é Deus por sua natureza, mas a natureza como tal não é Deus. Existe uma separação entre a natureza universal e o ser que a fundamenta, que lhe dá origem. Então, separam-se claramente física e metafísica. Só se venera ao Deus verdadeiro, ao que podemos reconhecer na natureza por meio do pensamento, mas Ele é mais que natureza. Precede-a, e ela é sua criação. Essa separação entre Deus e natureza leva consigo outro aspecto ainda mais decisivo: não se podia rezar ao Deus que era natureza, alma do mundo ou como quer que fosse seu nome; não era um “Deus religioso”, como havíamos visto. Mas então, segundo estabelece a fé do Antigo Testamento e, principalmente, do Novo Testamento, esse Deus que precede a natureza voltou-se para os homens. Justamente por não ser mera natureza, não é um deus que guarda silêncio. Entrou na História, foi ao encontro do homem e, deste modo, pode o homem encontrar-se com Ele. O homem pode unir-se a Deus porque Deus se uniu ao homem. As duas dimensões da religião sempre estiveram separadas – a natureza sempre dominante e a necessidade de salvação do homem que sofre e luta – aparecem intimamente unidas.
O racionalismo pode se transformar em religião porque o mesmo Deus do racionalismo entrou na religião. O elemento que realmente exige fé, a palavra histórica de Deus, é a condição prévia para que a religião possa se voltar, por fim, para o Deus filosófico, que já não é um mero Deus filosófico e que não rejeita o conhecimento filosófico, mas que o assume. E aqui se evidencia um fato surpreendente: os dois princípios fundamentais, aparentemente contrários, condicionam-se e andam unidos; juntos configuram a apologia do cristianismo como religio vera. O triunfo do cristianismo sobre as religiões pagãs foi possível não só pela reivindicação de sua racionalidade. Um segundo motivo teve igual importância. Consiste, em linhas gerais, no rigor moral do cristianismo, que Paulo já havia relacionado com a racionalidade da fé cristã: o que a lei realmente significa, as exigências que o Deus único faz à vida do homem, e que a fé cristã traz à luz, coincidem com o que o homem traz escrito no coração, de forma que o considera bom quando aparece diante dele. Coincide com o que é “bom por natureza” (Rm 2,14s.).
A alusão à moral estoica, a sua interpretação ética da natureza, fica aqui tão evidente quanto em outros textos paulinos, como a Carta aos Filipenses: “Levai em consideração tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama” (Fp 4,8). A união fundamental – embora crítica – com o racionalismo filosófico no conceito de Deus confirma-se e concretiza-se na união igualmente crítica com a moral filosófica. Do mesmo modo que no âmbito religioso, o cristianismo superou os limites das escolas filosóficas ao considerar o Deus que está no pensamento como um Deus vivo, também aqui se deu um passo da teoria ética à prática moral vivida em comum, na qual a perspectiva filosófica é superada pela concentração de toda a moral no duplo mandamento de amor a Deus e ao próximo, e se traduz em ação real.
Simplificando, poderíamos dizer que o cristianismo convenceu pela união da fé com a razão e pela orientação da atuação para a caritas, para a ajuda com amor aos que sofrem, aos pobres e aos fracos, acima de todo limite de condição.
A força que levou o cristianismo a se transformar em religião universal estava em sua síntese de razão, fé e vida; justamente essa síntese fica concretizada na expressãoreligio vera. Por isso se impõe cada vez mais a questão: por que hoje essa síntese já não convence? Por que hoje, ao contrário, são contraditórios e até excludentes entre si os conceitos de racionalismo e cristianismo? O que mudou no racionalismo, o que mudou no cristianismo para que isso seja assim?
Em sua época, o neoplatonismo, em especial Porfírio, opôs à síntese cristã uma interpretação diferente da relação entre filosofia e religião, que foi considerada uma refundação filosófica da religião dos deuses. Mas hoje essa outra maneira de harmonizar religião e racionalismo parece se impor de novo como a forma de religiosidade que mais se adapta à consciência moderna. Porfírio formula assim sua primeira ideia fundamental: latet omne verum, “a verdade está oculta”. Uma ideia na qual coincidem budismo e neoplatonismo. Segundo ela, sobre a verdade, sobre Deus, só existem opiniões, não existe certeza. Na crise de Roma de finais do século IV, o senador Símaco expressou as idéias neoplatônicas nas fórmulas simples e pragmáticas que podemos encontrar em seu discurso perante o imperador Valentiniano II, no ano 384, em defesa do paganismo e da restauração da deus Vitória no Senado romano. Citarei apenas a frase decisiva e que se tornou célebre: “Todos veneramos o mesmo, todos pensamos o mesmo, contemplamos as mesmas estrelas, o céu sobre nossa cabeça é um, o mesmo mundo nos acolhe; que importa por meio de que forma de sabedoria cada um busque a verdade? Não se pode chegar por um único caminho a um mistério tão grande”.
É justamente isso que diz o racionalismo hoje: não conhecemos a verdade como tal; temos a mesma opinião de formas diferentes. Um mistério tão grande, o divino, não pode se refletir em uma só figura que exclui todas as outras, em um caminho que todos são obrigados a seguir. Muitos são os caminhos, muitas as imagens, todas refletem algo do todo e nenhuma é, por si mesma, o todo. Isso abriga o ethos da tolerância, que reconhece em tudo um pouco de verdade, não põem o próprio acima do desconhecido e integra-se pacificamente à sinfonia polifônica do eternamente insuficiente que se oculta nos símbolos, que parecem ser nossa única possibilidade de alcançar o divino de algum modo.
Terá sido superada, portanto, a pretensão do cristianismo de ser religio vera pelo avanço do racionalismo? Deve abandonar a pretensão e aderir à visão neoplatônica, ou budista ou hinduísta da verdade e dos símbolos, deve se conformar – como propôs Troeltsch – com mostrar a parte do rosto de Deus voltada para os europeus? Deve ir um passo além de Troeltsch, cuja opinião era de que o cristianismo era a religião mais adequada para a Europa, ao passo que justamente hoje a Europa põe em dúvida essa adequação? Essa é a verdadeira questão que a Igreja e a teologia devem levantar na atualidade.
Todas as crises que ocorrem no cristianismo baseiam-se só de forma secundária em aspectos institucionais. Na Igreja, tanto os problemas das instituições quanto os das pessoas derivam, em última instância, do enorme peso desse fato. Esse é o desafio fundamental no início do terceiro milênio cristão. A questão não pode receber uma resposta meramente teórica, do mesmo modo que a religião como atitude última do homem não é só teoria. Precisa desta combinação de conhecimento e ação em que se baseou a força de convicção do cristianismo dos Pais [Padres] da Igreja.
Isso não significa, de modo algum, que se possa prescindir do aspecto intelectual do problema remetendo à necessidade da praxis. Tentarei, por fim, oferecer uma perspectiva que possa indicar a direção. Vimos que a união original, nunca indiscutível, de racionalismo e fé à qual Tomás de Aquino deu uma forma sistemática se rompeu não tanto pela evolução da fé quanto pelos novos avanços do racionalismo. Poderíamos mencionar como etapas dessa evolução: Descartes, Espinosa, Kant. A tentativa de uma nova síntese integradora por parte de Hegel não devolveu à fé seu lugar filosófico, mas tentou transformá-la em razão e suprimi-la como fé. A esse caráter absoluto do espírito, Marx opõe o caráter único da matéria; a filosofia deve se reduzir por completa a uma ciência exata, só o conhecimento exato é realmente conhecimento. Com isso suprime-se a ideia do divino. O anúncio de Auguste Comte de que um dia existirá uma física do homem e que as grandes questões das quais antes se ocupava a metafísica seriam tratadas no futuro de um modo tão “positivo’, como tudo o que já em nossos dias é ciência positiva, teve, em nosso século, uma impressionante ressonância nas ciências humanas.
Cada vez é menor a separação entre física e metafísica introduzida pelo pensamento cristão. Tudo deve tornar a ser “física”. A teoria da evolução tem se mostrado, cada vez mais, como o caminho para que a metafísica desapareça por completo, para fazer parecer supérflua a “hipótese de Deus” (Laplace) e para formular uma interpretação do mundo estritamente “científica”. Uma teoria da evolução que explica todo o real de modo global transformou-se em uma espécie de “filosofia primeira” que, por assim dizer, constitui a base da interpretação racional do mundo. Qualquer tentativa de pôr em jogo outras causas diferentes das incluídas nessa teoria “positiva”, qualquer tentativa de “metafísica”, tem de parecer um retrocesso diante do racionalismo, um abandono da pretensão de universalidade da ciência. Assim, a ideia cristã de Deus é considerada acientífica. Já não corresponde a nenhuma Theologia physica: neste sentido, a única Thelogia naturalis é a teoria da evolução, e esta não conhece nenhum Deus nem criador no sentido do cristianismo – do judaísmo e do islamismo -, nem uma alma do mundo ou uma força interna no sentido da Stoa (ou Pórtico Poecile, local onde Zenão ensinava e de onde vem o termo “estoico”). No máximo, do ponto de vista do budismo, poder-se-ia considerar todo este mundo como aparência e o nada como o verdadeiramente real, e justificar, assim, formas místicas de religião que pelo menos não competem de modo direto com o racionalismo.
Diz-se, com isso, a última palavra? Separaram-se definitivamente cristianismo e razão? De qualquer maneira, não há nenhuma via que evite o debate em torno do alcance da teoria da evolução como filosofia primeira e da exclusividade do método positivo como única forma de ciência e racionalidade. Assim, este debate deve ser mantido por ambas as partes com objetividade e disposição para escutar, o que até agora mal aconteceu. Ninguém pode duvidar seriamente das provas científicas dos processos microevolutivos. A questão que um crente levanta frente à razão moderna não faz referência a esse assunto, nem ao da macroevolução, e sim à expansão para uma philosophia universalis que pretende se transformar em uma explicação global do real e não gostaria de deixar de lado nenhum outro nível do pensamento.
Trata-se, enfim, de a razão ou racional estarem ou não no princípio de todas as coisas e em seu fundamento. Trata-se de saber se o real surgiu do acaso e da necessidade, ou seja, do irracional; se, portanto, a razão é um subproduto casual e irracional e carece também de importância no oceano do irracional, ou se continua sendo certa a ideia que constitui a convicção fundamental da fé cristã e sua filosofia: in principio erat verbum, “no princípio de todas as coisas está a força criadora da razão”. A fé cristã é, hoje como ontem, a opção da prioridade da razão e do racional. Esta questão última não pode mais ser resolvida mediante os argumentos das ciências naturais, e também o pensamento filosófico se choca aqui com seus limites. Neste sentido, não existe uma possibilidade última de demonstrar a opção cristã fundamental. Mas pode a razão renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos sem abolir a si mesma? A razão não pode fazer outra coisa a não ser pensar também sobre o irracional a seu modo, isto é, de modo racional, estabelecendo mais uma vez implicitamente, a questionada primazia da razão. Por sua opção em favor da primazia da razão, o cristianismo continua sendo, também hoje, “racionalismo”.
Vimos anteriormente que na concepção do mundo cristão primitivo os conceitos de natureza, homem, deus, ethos e religião estavam indissoluvelmente vinculados entre si, e que essa vinculação havia contribuído para que o cristianismo tomasse consciência da crise dos deuses e da crise do racionalismo antigo. A orientação da religião para uma visão racional da realidade, o ethos como parte dessa visão, e sua aplicação concreta sob a primazia do amor ficaram unidas entre si. A primazia do logos e a primazia do amor ficaram unidas entre si. A primazia do logos e a primazia do amor se mostraram idênticas. O logos se mostrava não só como razão matemática no fundamento de todas as coisas, mas como amor criador a ponto de “compadecer” com o criado. O aspecto cósmico da religião, que venera o Criador em seu poder sobre a existência, e seu aspecto existencial, a questão da redenção, vincularam-se e se transformaram em um só. De fato, toda explicação do real que não possa apoiar também um ethos com razões claras é necessariamente insuficiente.
Na realidade, a teoria da evolução também tenta dar uma nova fundamentação ao ethos do ponto de vista da evolução ao pretender se transformar em uma philosophia universalis. Mas esse ethos relacionado com a evolução, que encontra inevitavelmente seu conceito-chave no modelo de seleção, isto é, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação com sucesso, pode oferecer pouco consolo. Embora se tente enfeitá-lo de diversas formas, continua sendo um ethos cruel. A tentativa de destilar o racional do que é em si irracional fracassa aqui de forma evidente. Tudo isto é pouco apropriado para uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo e da necessária abnegação de cada um.
A tentativa de dar de novo um sentido claro ao conceito do cristianismo como religio vera no meio dessa crise da humanidade deve se basear igualmente, por assim dizer, no reto agir (ortopraxis) e no reto crer (ortodoxia). Seu argumento mais profundo deve consistir – ao fim e ao cabo como então – em que o amor e a razão coincidem como verdadeiros pilares fundamentais do real: a razão verdadeira é o amor, e o amor é a razão verdadeira. Em sua união constituem o verdadeiro fundamento e o objetivo do real.
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RATZINGER. Joseph. Deus existe? São Paulo: Planeta, 2009.
Fonte: O Fiel Católico