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Leão XIV prolonga legado dos papas contra o antissemitismo

Ao mencionar que todos os seus predecessores condenaram o antissemitismo “com palavras claras”, Leão XIV retoma um itinerário que se iniciou bem antes do Concílio Vaticano II.

Foto: Vatican news/ Vatican Media

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Redação (30/10/2025 08:39, Gaudium Press) O discurso de Leão XIV, proferido durante a audiência geral de 29 de outubro, reafirmando que “a Igreja não tolera o antissemitismo”, insere-se numa linha histórica de coerência e continuidade do Magistério Pontifício a partir do século XX. Uma leitura atenta do texto publicado no site vatican.va revela que o atual Pontífice não se limitou a reiterar um princípio já estabelecido; quis, antes, evocar a gênese teológica da amizade entre cristãos e judeus, cuja raiz não reside em uma política conjuntural, mas no próprio Evangelho. Ao mencionar que todos os seus predecessores condenaram o antissemitismo “com palavras claras”, Leão XIV retoma um itinerário que se iniciou bem antes do Concílio Vaticano II e que encontrou no documento Nostra aetate apenas a sua formulação doutrinal mais explícita.

Ainda no século passado, Pio XII — frequentemente mal interpretado pela historiografia secularizada — foi um dos primeiros a perceber que a luta contra o antissemitismo não era apenas uma questão política, mas um imperativo moral, nascido da lei natural e do mandamento da caridade. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Papa Pacelli usou os canais diplomáticos da Santa Sé para proteger milhares de judeus perseguidos, abrindo conventos e institutos religiosos, e promovendo uma rede silenciosa de acolhida em Roma e em várias dioceses da Europa ocupada. Ao afirmar que todos os homens são membros de uma mesma família humana, Pio XII antecipava o princípio que Leão XIV hoje reafirma: não há espaço para ódio racial onde há fé verdadeira no Deus de Abraão.

Esse mesmo fio espiritual uniu João XXIII, que suprimiu das orações da Sexta-Feira Santa a expressão “pérfidos judeus”, e Paulo VI, que promulgou Nostra aetate em 1965 — texto que Leão XIV qualifica como “ponto de não retorno” na consciência da Igreja. Essa declaração não foi um gesto político, mas teológico: reconheceu que as “raízes judaicas da Igreja” fazem parte da sua própria identidade, e que, por isso, qualquer forma de perseguição ao povo de Israel fere o próprio corpo de Cristo.

João Paulo II foi, talvez, o Papa que mais visivelmente converteu em atos concretos a reconciliação entre cristãos e judeus, iniciada por Nostra aetate. Filho de uma Polônia devastada pelo Holocausto, João Paulo II carregava na memória o sofrimento do povo judeu como parte de sua própria história. Em 1986, tornou-se o primeiro Pontífice a visitar uma sinagoga — a de Roma —saudando os judeus como “irmãos mais velhos na fé”. No ano 2000, durante sua peregrinação a Jerusalém, introduziu nas fendas do Muro das Lamentações uma oração pedindo perdão pelos pecados cometidos pelos filhos da Igreja contra o povo de Israel. Esses gestos, aliados ao estabelecimento de relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Estado de Israel, selaram uma etapa decisiva na superação de séculos de desconfiança. Para João Paulo II, combater o antissemitismo não era mera exigência moral, mas um dever teológico: reconhecer no povo judeu a origem viva da própria fé cristã.

Bento XVI, alemão que viveu a juventude sob a sombra do nazismo, trazia em sua biografia a consciência trágica do Holocausto. Em suas viagens a Auschwitz e a Jerusalém, falou com voz comovida sobre “o silêncio de Deus” diante do horror, e reafirmou que nenhum cristão pode permanecer indiferente ao sofrimento do povo judeu. Recordando a dramática história de seu país, insistiu que o antissemitismo é uma negação do Evangelho e uma ferida aberta na humanidade, curável apenas pela verdade e reconciliação.

Francisco, em continuidade com essa tradição, retomou o diálogo com as comunidades judaicas em Roma, Jerusalém e Nova Iorque, denunciando repetidas vezes o ressurgimento de ideologias antissemitas e classificando-as de “vírus do mal”. A sua ênfase pastoral — acolher, dialogar, reconciliar — já indicava que a amizade com o povo judeu é hoje uma via de testemunho cristão neste mundo fragmentado.

Leão XIV, no entanto, amplia essa perspectiva, integrando-a no contexto mais vasto do diálogo inter-religioso e da ética tecnológica. Ao mencionar a inteligência artificial e a dignidade humana, ele mostra que o combate ao antissemitismo é apenas um aspecto da defesa mais ampla da pessoa criada à imagem de Deus.

Sua catequese parte de um episódio evangélico — o encontro de Jesus com a samaritana — para indicar que o verdadeiro diálogo não nasce da diplomacia, mas da conversão interior. É nesse ponto que a mensagem do Papa adquire o tom da tradição espiritual dos pontífices do pós-guerra: o reconhecimento do outro não como ameaça, mas como espelho do mistério divino. Assim como Pio XII enfrentou as trevas do totalitarismo, e Francisco advertiu contra o relativismo cultural, Leão XIV enfrenta o novo perigo da instrumentalização política das religiões.

O Papa Leão insiste que “não devemos permitir que as circunstâncias políticas e as injustiças de alguns nos desviem da amizade,” frase que, inserida no contexto atual de guerras e polarizações, soa como advertência e profecia. A Igreja, assevera o Pontífice, não se deixa arrastar por ideologias, pois o seu compromisso é com a verdade revelada, a qual exclui qualquer forma de discriminação. Há aqui um eco direto das palavras de Pio XII ao afirmar que “não há distinção entre os homens quando se trata da salvação”.

A alocução de hoje revela, portanto, uma pedagogia da memória. Leão XIV não cria uma nova doutrina, mas restabelece o fio que une os pontificados do século XX à urgência espiritual do presente: desvincular a fé de qualquer conotação política e recordar que o amor ao povo judeu não é concessão diplomática, mas ato de fidelidade a Cristo, que era judeu, originário do povo de Israel.

A continuidade entre Pio XII, João XXIII, Francisco e Leão XIV demonstra que, para a Igreja, o combate ao antissemitismo é também combate à desumanização. À medida que o mundo se entrega novamente a fanatismos e manipulações ideológicas, a voz dos papas ergue-se como consciência viva da fraternidade universal. Ao convidar judeus e não cristãos para rezar na praça de São Pedro, Leão XIV pretendeu ressaltar que não se trata de uma mera cerimônia ecumênica, mas de uma imagem visível da esperança de que a humanidade, reconciliada com suas raízes espirituais, reencontre o caminho da paz.

 Por Rafael Tavares

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