Após dois anos de proibição, a missa segundo o rito antigo ecoou novamente na Basílica de São Pedro. O Cardeal Raymond Leo Burke celebrou a missa solene no Altar da Cátedra, no coração do Vaticano.
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Redação (27/10/2025 10:42, Gaudium Press) A celebração da Missa Tridentina na Basílica de São Pedro, em 25 de outubro de 2025, presidida pelo Cardeal Raymond Leo Burke, reacendeu debates sobre a relação entre tradição e reforma dentro da Igreja Católica.
Após dois anos sem que o rito antigo fosse autorizado no Altar da Cátedra, a celebração foi um marco. Para muitos, foi um sinal de reconciliação e respeito à herança litúrgica que moldou séculos de espiritualidade católica. Para outros, levantou questionamentos sobre a direção pastoral e teológica do novo pontificado de Leão XIV, sucessor de Francisco, e sobre o delicado equilíbrio entre unidade e diversidade na vida eclesial.
Segundo reportou o site de notícias católicas Catholic News Agency, Burke celebrou a Missa Pontifical Solene em latim, por ocasião da peregrinação anual “Summorum Pontificum” – evento que reúne católicos devotos da liturgia anterior ao Concílio Vaticano II. A celebração foi precedida por uma procissão solene e contou com significativa participação de fiéis.
Durante o pontificado de Francisco, o Vaticano havia imposto restrições severas à Missa Tridentina, especialmente após o motu proprio Traditionis Custodes, cujo objetivo seria preservar a unidade do rito romano e evitar que o antigo missal fosse utilizado como símbolo de oposição ao Concílio. A retomada da liturgia tradicional no coração do Catolicismo e presidida por um cardeal identificado com o setor mais tradicional foi, portanto, interpretado como um sinal de abertura pastoral e uma tentativa de reconciliação com os fiéis ligados à forma extraordinária do rito romano.
De acordo com a Catholic News Agency, o acontecimento é apresentado não apenas como uma vitória simbólica dos tradicionalistas, mas um indicador de equilíbrio e prudência do novo Papa. O texto ressalta que a Missa Tridentina, mais do que uma questão ritual, tornou-se um ponto central das discussões sobre a identidade da Igreja. O rito antigo representa, para muitos, um vínculo com a continuidade doutrinal e teológica que atravessa os séculos, além de ser um símbolo da sacralidade e da reverência que alguns consideram ter-se diluído nas formas litúrgicas pós-conciliares.
A reportagem destaca o número crescente de jovens católicos que redescobrem no rito tradicional uma expressão autêntica de fé, uma fonte de vocações e um espaço de contemplação. Essa redescoberta não pode ser ignorada por um Papa que deseja governar a Igreja com sensibilidade pastoral e atenção às aspirações do povo de Deus.
A Catholic News Agency sublinha ainda que, ao permitir a celebração, o Papa Leão XIV não rompe com a herança do Vaticano II nem fecha as portas à tradição litúrgica pré-conciliar. A atitude do Papa é apresentada como uma combinação de realismo e magnanimidade — uma abertura pastoral que busca harmonizar tradição e renovação sem comprometer a unidade da Igreja.
Por outro lado, Colleen Dulle, vaticanista da America Magazine, é mais analítica e cautelosa. Para ela, o retorno da Missa Tridentina à Basílica de São Pedro não é apenas uma questão de estilo litúrgico, mas um episódio com implicações teológicas e eclesiais de longo alcance.
Dulle observa que a forma da liturgia expressa uma determinada visão de Igreja. O rito reformado após o Vaticano II buscou promover uma compreensão mais comunitária e participativa da Eucaristia, em contraste com a espiritualidade mais hierárquica e contemplativa do antigo rito. O fato de a Missa Tridentina voltar a ser celebrada publicamente na Basílica, portanto, reabre debates que pareciam encerrados: o que significa “unidade litúrgica”? Até que ponto é possível pluralismo sem fragmentação?
Dulle recorda que o Traditionis Custodes surgiu da preocupação de que o uso do missal de 1962, em alguns contextos, se transformara em um símbolo de resistência ideológica ao magistério conciliar. Nesse sentido, o gesto do Papa Leão XIV precisa ser interpretado com discernimento. Para ela, a celebração conduzida por Burke pode representar um sinal pastoral de inclusão, mas não necessariamente uma mudança doutrinal ou jurídica. O desafio, segundo Dulle, está em garantir que o rito extraordinário seja vivido em comunhão e não como contraponto à Igreja conciliar. Ela alerta que o risco está em que a simbologia da “vitória tradicionalista” acabe obscurecendo o esforço da reforma litúrgica de unir fé e participação.
Duas visões
Enquanto a Catholic News Agency enfatiza o valor espiritual e identitário do rito tradicional, a leitura da revista jesuíta America destaca suas implicações eclesiológicas e pastorais. Para a primeira, o evento é sinal de esperança: a tradição litúrgica, longe de ser obstáculo, pode revitalizar a fé e fortalecer o sentido de sacralidade no culto católico. Para a segunda, é preciso cuidado para que a recuperação dessa tradição não crie guetos espirituais nem alimente tensões entre fiéis e bispos.
Ambas, no entanto, convergem em um ponto essencial: a liturgia é o espelho da Igreja. O modo como a Igreja celebra reflete como ela se entende e, por isso, qualquer mudança litúrgica carrega um peso simbólico muito maior do que parece à primeira vista.
A convergência entre as duas leituras aparece quando ambas reconhecem que a Missa Tridentina deixou de ser apenas uma forma de culto e se tornou símbolo de uma disputa mais ampla: a maneira como a Igreja entende a si mesma diante da modernidade. Para a Catholic News Agency, essa disputa, conhecida popularmente nos EUA como “liturgy wars”, pode ser fecunda se conduzida com caridade e prudência; para Dulle, ela é perigosa se for conduzida por nostalgia e polarização. Em ambos os casos, a Missa celebrada por Burke na Basílica de São Pedro é vista como um teste de unidade: será possível redescobrir a beleza da tradição sem retroceder nos avanços pastorais do Concílio?
A reautorização da Missa Tridentina em São Pedro pode, assim, ser interpretada como chave histórica. Depois de anos de tensões e proibições, a Igreja parece abrir espaço para um diálogo litúrgico mais sereno, reconhecendo que a fidelidade à tradição não é incompatível com o espírito de reforma. Para os fiéis apegados à forma antiga, é o reconhecimento de que seu modo de rezar também é expressão legítima da fé católica. Já para os defensores da reforma, é um lembrete de que a verdadeira unidade não se impõe por decreto, mas se constrói no respeito mútuo.
Em última análise, o episódio mostra que a Igreja continua a viver a tensão entre continuidade e renovação — uma tensão que não deve ser vista como fraqueza, mas como sinal de vitalidade. A Missa Tridentina na Basílica de São Pedro, após dois anos de proibição, tornou-se um espelho dessa dinâmica: um gesto que, dependendo do olhar, pode significar restauração ou reconciliação, resistência ou comunhão.
O Papa Leão XIV parece compreender que a Igreja não pode escolher entre passado e presente, porque ambos fazem parte do mesmo mistério. Ao permitir que a liturgia antiga volte a ecoar sob a cúpula de Michelangelo, ele convida a Cristandade a rezar unida — em latim ou em vernáculo— diante do mesmo altar e do mesmo Deus.
Por Rafael Tavares
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