Adão, apesar de ter pecado, não tinha direito sobre sua própria vida, mas, em forma de expiação, podia, sim, oferecer algo em troca dela. Esta é a razão da existência dos sacrifícios.
Redação (16/10/2023 17:17, Gaudium Press) Era o sexto dia da criação quando, segundo o relato do livro do Gênesis, Deus formou um boneco de barro, soprou-lhe nas narinas e conferiu-lhe a vida (cf. Gn 1,26-30; 2,7). O Homem estava criado. Feito à imagem e semelhança de seu divino Criador, Ele havia sido dotado de uma natureza sumamente íntegra e, como se não bastasse, o Criador lhe concedeu a dádiva mais preciosa que lhe era possível conceder: sua própria amizade e amor.
Ora, Adão foi capaz de trocar tudo isto por uma fruta sobre a qual pairava a proibição divina de se comer. E a História, com o rompimento desta lei, mudou de fisionomia. O sangue, o suor e as lágrimas tornaram-se companheiros dos homens, os quais passariam a nascer já maculados pela mancha original.
O que mereceria o nosso primeiro pai senão morrer imediatamente depois do pecado? Mas Deus lhe poupou deste mal e deu-lhe a oportunidade de viver para pedir o perdão de sua falta. Entretanto, como adquirir a clemência e misericórdia divinas sem o Sacramento da penitência que viria a ser instituído somente milênios mais tarde?
Adão não tinha direito sobre sua própria vida, por isto não podia desejar para si a morte que merecia; porém, podia, sim, oferecer algo em troca dela. E, através desta necessidade de se apresentar algo a Deus, se instituiu a oferenda dos SACRIFÍCIOS.
A título de exemplo, continuemos a narração do livro do Gênesis: “Ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele” (Gn 4,3-4). E diz ainda que “Deus olhou com agrado para Abel e para a sua oblação” (Gn 4,4). Ora, este “olhar com agrado” de Deus era o que buscavam os homens da antiguidade quando ofertavam suas imolações à divindade.
Com o passar do tempo, esta instituição sacrifical foi tomando forma. De evolução em evolução, ela passou a constituir um cerimonial sagrado para muitas nações, sobretudo para aqueles que eram chamados a constituir o povo religioso por antonomásia: os judeus.
O vocábulo sacrifício é derivado do termo qorban, palavra proveniente de uma mescla de hebraico e aramaico cuja trilogia qrb significa “aproximar”, “aquilo que se aproxima”[1] e constituía para o povo eleito o ato principal do culto, podendo ser definido como “toda oferenda, animal ou vegetal, que se consome inteira ou em parte sobre o altar como obséquio à divindade”.[2]
O primeiro capítulo do livro do Levítico é dedicado à descrição dos diversos modos de sacrifícios operados pelos sacerdotes no Templo de Jerusalém: inicialmente, trata dos HOLOCAUSTOS (‘olah, עֹלָ֤ה); em segundo lugar, das OBLAÇÕES (minjah, מִנְחָה֙); depois, ainda, dos SACRIFÍCIOS PACÍFICOS (selem, שְׁלָמִ֖); por fim, do SACRIFÍCIO PELO PECADO (jattah, חַטָּ֔א) e PELO DELITO (’asam, אָשֵֽׁמ).
Vamos analisar cada uma destas formas de sacrifício em artigos distintos. Examinemos a primeira descrita acima.
O Holocausto no Templo de Jerusalém
Não constitui um fácil trabalho definir a etimologia precisa do vocábulo holocausto e isso se deve à numerosa quantidade de termos com os quais este cerimonial sagrado é chamado. Alguns exegetas enunciam que isto é assim devido à grande evolução histórica dos sacrifícios de acordo com as suas práticas e ambientes onde foram operados.
Um primeiro vocábulo que aparece para designar o rito do holocausto é o ‘Olah, palavra hebraica cuja raiz significa “subir”, pois é o Sacrifício que sobe sobre o altar ou, segundo outra interpretação, cuja fumaça subia até Deus ao ser consumido pelas chamas. Ora, este último termo parece ser às vezes substituído pelo Kâlîl (cf. Sm 7,8; Dt 33,10), que indica um sacrifício total ou completo, justificando a palavra que foi utilizada na tradução grega das Sagradas Escrituras e que também passou para os nossos idiomas latinos: Holocausto (‘όλον = todo; καιώ = queimado).[3]
Os holocaustos eram os sacrifícios por excelência. Neles, as vítimas oferecidas deviam ser queimadas por completo. Diz-se desta classe de oferenda que era de “suave odor a Yahvé”, porque implicava em uma entrega total da vítima por parte do oferente, já que nada do animal se reservava para seu uso, como acontecia nos outros tipos de sacrifícios; constituía um reconhecimento solene da soberania de Deus sobre uma coisa.[4]
Todos os atos que circundavam o serviço direto do altar estavam reservados aos sacerdotes, enquanto os demais eram cumpridos pelos oferentes. No entanto, com a evolução dos cerimoniais sacrificais, os sacerdotes terminaram assumindo os atos que, primitivamente, convinham somente aos leigos.
Este tipo de sacrifício é conhecido desde a época patriarcal e é o fundamento do culto levítico. O ritual do holocausto sofria modificações de acordo com o animal oferecido. Havia variações se o sacrificado fosse “gado maior”, bovino, ou de “gado menor”, ovino ou caprino, ou uma ave. No primeiro caso, o sacrifício era mais solene, a vítima devia ser um macho imaculado, ou seja, sem defeito corporal algum”.[5] Segundo nos narra o Levítico, o oferente “o trará à entrada da Tenda da Reunião para obter o favor do Senhor. Porá a mão sobre a cabeça da vítima, que será aceita em seu favor para lhe servir de expiação. Matará o novilho diante do Senhor. Os sacerdotes, filhos de Aarão, oferecerão o sangue e o derramarão ao redor, sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião. Tirará a pele da vítima e esta será cortada em pedaços. Os filhos do sacerdote Aarão porão fogo no altar e empilharão a lenha sobre ele, dispondo, em seguida, por cima da lenha, os pedaços, a cabeça e a gordura. Lavarão com água as entranhas e as pernas, e o sacerdote queimará tudo sobre o altar. Esse é um holocausto, um sacrifício consumido pelo fogo, de odor agradável ao Senhor.
“Se a sua oferta for um holocausto tirado do gado menor, dos cordeiros ou das cabras, oferecerá um macho sem defeito. Matará o animal ao lado norte do altar, diante do Senhor, e os sacerdotes, filhos de Aarão, derramarão o seu sangue em redor do altar. A vítima será, em seguida, cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada no fogo do altar. As entranhas e as pernas serão lavadas com água, e, em seguida, o sacerdote oferecerá tudo isso, queimando-o no altar. Esse é um holocausto, um sacrifício consumido pelo fogo, de odor agradável ao Senhor” (Lv 1,3-13).
Ainda havia o ritual para o holocausto de aves, que podiam ser rolas ou pombinhos (Lv 1,14). Nele se verificavam as seguintes mudanças: não havia imposição das mãos, nem degolação; tudo se fazia sobre o próprio altar, sendo operado, por conseguinte, pelo sacerdote em pessoa.
No ritual mais recente, o holocausto é acompanhado por uma oferenda, minhah, de farinha amassada com azeite e de uma libação de vinho: na festa da semana, (segundo o livro do Levítico 23,18); nos holocaustos cotidianos (segundo o livro do Êxodo 29,38-42); e em todos os sacrifícios ‘olah e zebah’ (segundo o livro dos Números 15,1-16). A farinha se queimava, o vinho se derramava ao pé do altar, como o sangue.[6]
Assim os judeus cumpriam o ato mais solene do seu culto no templo de Jerusalém: o holocausto.
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Em artigos subsequentes contemplaremos os outros tipos de sacrifícios do Antigo Testamento.
Por João Pedro Serafim
[1] Cf. COLUNGA, Alberto; GARCIA CORDERO, Maximiliano. Biblia comentada: Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, p. 627. (Trad. pessoal).
[2] Cf. DE VAUX, Roland. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona: Herder, 1976, p. 528. (Trad. pessoal).
[3] Cf. DE VAUX. Op. cit., p. 529.
[4] COLUNGA; GARCIA CORDERO. Op. cit., p. 627.
[5] Ibid., p. 628.
[6] Cf. DE VAUX. Op. cit., p. 530.
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