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Um “descuido” imperdoável

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A 31 de outubro de 1517, era afixado um prospecto protestante numa capela da Alemanha: as noventa e cinco proposições de Lutero, que cindiram o mundo católico.

Redação (06/11/2020 09:08, Gaudium Press) Os territórios germânicos maculados por Lutero foram, sem dúvida, o palco mais conturbado da Europa renascentista do séc. XVI.

Mas como foi possível que as teses do frade agostiniano cheio de paixão, vontade inquieta e violenta, tenham conseguido mudar o rumo do mundo católico em tão pouco tempo?

E como, a partir de uma simples “querela de frades!” – segundo o incipiente juízo emitido por Roma –, lograram alcançar tamanha envergadura os gestos e as palavras desse contraditor personagem?

Gesto de revolta

Estamos a 31 de outubro de 1517. Milhares de pessoas de todas as partes da Alemanha se dirigem a Wittenberg, em extraordinária afluência e animação, com o intuito de venerar as relíquias que Sua Alteza Frederico, o Sábio, conseguira reunir; era, pois, a Festa de Todos os Santos. “À veneração desses insignes tesouros estavam ligadas numerosas – e rendosas – indulgências”.[1]

Lutero, aproveitando-se da propícia ocasião, em virtude da grande afluência de peregrinos, quis cravar seu grito de inconformidade e antipatia à Sé de Roma nessa data: era o clamor contrário a todos os Santos.

Com efeito, na manhã deste dia apareceu afixado nas portas da capela do castelo, um prospecto escrito em um latim rude, contendo noventa e cinco teses do frade agostiniano, numa exasperada exposição contra as indulgências oferecidas àqueles que, por exemplo, rezavam diante de relíquias e, em seguida, podiam ofertar algum donativo na caixa das esmolas.

De seu lado, o religioso protestante – que contava somente trinta e quatro anos – se dispunha a defendê-las contra qualquer contraditor que o quisesse enfrentar.

A verdadeira causa das proposições

A questão das indulgências, especialmente no período da Renascença, sempre foi muito debatida entre os historiadores e os teólogos. É, ainda, um problema de dificultosa solução, somado, todavia, aos abusos de simonia.

Embora tenha havido deslizes na reta administração das indulgências – a Igreja, apesar de imaculada e indefectível, é composta por homens, e todos eles concebidos no pecado original –, tais problemas não constituíram o cerne da revolta de Lutero. Entrementes, os sentimentos do frade alemão eram bem outros, e ele tinha muito claro o fim que o motivava a defendê-los com invulgar contumácia.

Muito mais do que uma inconformidade a propósito da administração desses bens espirituais, o urro luterano foi a exposição de um drama muito mais profundo, interior, de desprazer, descontentamento e insatisfação para com as leis estabelecidas pela Igreja; pelos Papas, mais exatamente.

O drama interior de uma alma

Como muito bem aponta certo historiador, Lutero era bem a figura de um “filho de seu tempo, da sua terra, [daquela] Alemanha onde a luta do homem contra as potências noturnas se traduzia em lendas infernais e sublimes, e [do] cristianismo em crise cujos sermões impunham à consciência a obsessão dos derradeiros fins do homem. Não lhe bastara envergar o hábito para se ver livre desses fantasmas”.[2]

Lutero sempre sofreu de uma angústia terrível que o atormentou até o fim dos seus dias. Somadas a elas, a sua indubitável fraqueza e indolência nos combates às inclinações da carne faziam com que ele sentisse verdadeiro pavor do seu fim eterno e da Justiça divina, como testemunhou certo amigo seu: “O meu coração sangrava ao rezar o Cânon da missa”.[3]

E, como se comprovará pelo seu ‘casamento’ com uma freira, será justamente o pecado da carne que instigará o fogo das paixões em seu coração, e o levará a proferir as piores blasfêmias contra Deus, a Igreja e o Papa.

Crê-se, portanto, que a sua antipatia para com a ordem estabelecida pela Igreja – a hierarquia, os sacramentos, os favores espirituais, – tinha razões muito claras: no âmago de sua consciência, o frade protestante procurava uma justificativa para a sua má conduta, pois que os dez mandamentos talvez fossem duros demais…

O marco inicial de uma determinação irrevogável

Em decorrência da revolta de Lutero, deu-se vazão à ‘Reforma da Igreja’, quando, então, uniram-se a ele muitos outros desafetos da moral católica.

No entanto, sem compreender muito da envergadura e importância teológica e moral da “simples querela de frades”, que em muito já ultrapassava o âmbito regional de Wittenberg, o Papa mecenas, Leão X – quiçá mais atento com a decoração vaticana – não se preocupou inicialmente com o caso.

Mais tarde, quando as paixões humanas se encontravam em chamas incontroláveis, foi imprescindível tentar apagar o fogo com uma excomunhão. Contudo, a fumaça sobe, ainda até nossos dias…

Seja em descobrir o princípio formal ou o princípio material da “reforma” afixada pelo protestante, os fatos indicam ter havido grande demora numa intervenção coercitiva: não teria estado a “secretaria vaticana” – ainda em gestação naquela época – necessitada de uma ajuda intelectual e, sobretudo, moral?

O resultado é que, por causa disso, até hoje a Igreja sofre as consequências da revolta do drama interior de uma alma. É que, quando há crise de autoridade, estabelece-se, ipso facto, crise de unidade e, condicionando as duas, crise nas almas, nas consciências e nos espíritos:[4] o mundo católico fica cindido em dois.

Por Renan Costa


[1] ROPS, Henri-Daniel. A Igreja da Renascença e da Reforma. São Paulo: Quadrante, 1996, p. 265.

[2] Cf. ROPS. p. 272.

[3] Cf. Idem.

[4] Cf., p. 30.

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