A humildade mal-entendida, levada a seus últimos extremos, desemboca no juízo deturpado de certos contemporâneos nossos que chegam a afirmar ser orgulhoso quem denuncia o mal. Ou, dito de outra maneira, o permissivismo moral ― que hoje alastrou-se por todos os povos e erigiu-se como lei absoluta ― só condena um único “escândalo”: delatar o mal.
Redação (30/05/2021 08:10, Gaudium Press)
Naquele tempo, os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando viram Jesus, prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns duvidaram. Então Jesus aproximou-Se e falou: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a Terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28, 16-20).
Os poucos versículos do Evangelho da Solenidade da Santíssima Trindade são de fácil compreensão e tornam dispensáveis longas digressões para aprofundar seu significado. Mas é de capital importância, para melhor degustar o relato de São Mateus no final de seu Evangelho, conhecer bem exatamente as causas que levaram Jesus a afirmar aos Apóstolos: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a Terra”. Ou seja, o porquê coube a Ele, enquanto Filho do Homem, conferir aos Apóstolos o poder oficial de ensinar a todas as nações e batizá-las em nome da Santíssima Trindade.
A transformação das mentalidades
Com a acentuada e crescente decadência moral dos últimos tempos, paulatinamente vão se transformando as mentalidades, e passam a vigorar novas normas, insurgindo-se contra as eternas estabelecidas por Deus. Dando largas às suas paixões e vícios, numa progressiva via de deterioração dos princípios morais mais profundos, os homens contemporâneos chegam a dizer “consigo mesmos: ‘O Senhor não faz bem nem mal’” (Sf 1, 12); e acabam por eleger para si máximas relaxadas de vida: “Tudo é permitido… É proibido proibir”.
Ora, se nós abrirmos os Evangelhos, constataremos que não foi esta a conduta de Jesus e nem sequer por aí rumaram seus conselhos. Muito pelo contrário, o Divino Mestre afirmou: “Dizei somente: ‘Sim’, se é sim; ‘não’, se é não” (Mt 5, 37).
Jesus foi pedra de escândalo
Durante sua vida pública, Cristo dividiu os campos entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio. Assim o mostrou, por exemplo, São Beda, o Venerável, ao afirmar: “Quando Jesus pregava e prodigalizava seus milagres, as multidões eram tomadas pelo temor e glorificavam o Deus de Israel; mas os fariseus e escribas acolhiam com palavras carregadas de ódio todos os ditos que procediam dos lábios do Senhor, como também as obras que realizava”.[1]
Já ao ser o Menino Deus apresentado no Templo, Maria ouviu de Simeão estas palavras: “Eis que este Menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições” (Lc 2, 34). O fato de Jesus ter sido pedra de escândalo é uma das causas de O terem odiado e de O tratarem como o Homem mais rejeitado da História. Este escândalo deu-se, sinteticamente, por três razões.
Por sua humildade e grandeza: A Pessoa Divina de Jesus une em Si dois extremos opostos: a humildade e a grandeza. Que o Messias nascesse em uma gruta, talvez ainda fosse aceitável para o orgulho humano, mas morrer na Cruz… Era levar esta virtude até limites inconcebíveis. De outro lado, Cristo, de dentro de sua inferior condição humana, demonstrou seu domínio sobre as enfermidades e a própria morte, sobre os mares, os ventos e as tempestades, causando espanto até aos seus mais íntimos. É-nos fácil compreender a humildade, contudo, vê-la harmonicamente subsistir com a grandeza, num mesmo ser, choca nossa débil inteligência. Entretanto, Jesus nos chama à prática destas virtudes opostas: por um lado, estarmos convictos de nossa contingência; por outro, vivermos na plena compenetração de sermos, pelo Batismo, filhos de Deus.
Jesus, ademais, escandalizou por sua doutrina: não só por expô-la com clareza e integridade totais, mas por ser Ele a própria Verdade em essência: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14, 6). Não é difícil compreender o espanto de muitos ao ouvir o filho do carpinteiro dizer isto! Como afirma Donoso Cortés,[2] célebre escritor do século XIX, o homem aceita verdades, todavia tem dificuldade em admitir a Verdade. A acirrada polêmica de Jesus com os fariseus tinha em seu cerne esta problemática: apontava o Divino Mestre para o grave dever moral de adequar a vida e os costumes à Lei de Deus. Mas, sobretudo, convidava seus ouvintes a aceitá-Lo como fonte e substância de tudo aquilo que pregava. Os fariseus eram hipócritas, condutores cegos, serpentes, raça de víboras, etc. (cf. Mt 23, 13-33), e em seu orgulho estavam resolvidos a nunca aceitar a Verdade. Daí a perseguição até a morte, movida por eles contra o Verbo Encarnado.
Por fim, Jesus escandalizou por sua santidade: “Ora, este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, pois as suas obras eram más. Porquanto todo aquele que faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas” (Jo 3, 19-20).
Ainda hoje — e assim será até o dia do Juízo — o pecador, em sua concupiscência, tem horror ao justo, pois, à luz da vida deste, dá-se conta da maldade e feiura do vício que abraçou, e não querendo abandoná-lo, procura destruir ou denegrir o símbolo que o censura. A verdadeira santidade consiste em conhecer a Verdade, amá-la e praticá-la, ainda que isto possa levantar incompreensões e até rejeição. Disto Ele nos deu pungente exemplo no “consummatum est”(Jo 19, 30), do alto da Cruz: de sinal de escárnio e de ignomínia, ela foi transformada pelo Redentor em trono de honra, poder e glória.
Na rejeição está a origem de seu poder
Terminadas estas considerações, voltamos a nos perguntar: onde encontrar a base da onipotência dada ao Filho do Homem? Enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Cristo é onipotente desde toda a eternidade. E, enquanto Homem, participa deste poder na sua plenitude, devido à união hipostática entre a natureza humana e a divina na Pessoa do Verbo.[3]
Não é a esta origem de seu poder régio e universal que Jesus faz referência no trecho do Evangelho de hoje, pois afirma explicitamente: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a Terra”. Este versículo tem estreita relação com a realeza de Cristo por direito de conquista. Ou seja, pelo fato de ter redimido o mundo pela sua Paixão e Morte de Cruz.
Trata-se de um domínio que Lhe foi dado no tempo, e não daquele seu eterno, como tão claramente transparece em Daniel (cf. Dn 7, 13-14), Lucas (cf. Lc 1, 32-33) e muito mais na Encíclica Quas Primas, de Pio XI:
“Que coisa há mais doce e suave para nós que o pensamento de que Cristo impera sobre nós, não só por direito de natureza, senão, ademais, por direito de conquista, adquirido à custa da Redenção?”. [4]
Eis o fundamento de “toda a autoridade” entregue a Cristo-Homem: sua Paixão e Morte, a Redenção do mundo. Ora, foi pelo escândalo produzido por Jesus, sem a menor fímbria de respeito humano, que Ele foi rejeitado e crucificado. Pela aceitação humilde desta total rejeição, fez-Se objeto de tão grande mérito: de rejeitado, tornou-Se onipotente.[5] Por este motivo, Ele mesmo disse aos discípulos de Emaús: “Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24, 26).
Nós e o escândalo
O homem tem verdadeira ânsia de poder, mas procura-o por vias equivocadas. A Redenção nos elevou do estado de meras criaturas à categoria de filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, e fez de nós verdadeiros templos de Deus (cf. Rm 8, 17; II Cor 6, 16).
Esta qualidade adquirida no Batismo exige uma alta compenetração a respeito da dignidade e grandeza de nossa participação na vida divina. No entanto, de outro lado, somos concebidos no pecado original. Nossa natureza é débil, e por isso somos obrigados a reconhecer nossa contingência, aprendendo de Jesus a sermos mansos e humildes de coração (cf. Mt 11, 29).
Falsa noção de humildade
Muito se tem insistido ao longo dos séculos sobre esta virtude, da qual Nosso Senhor é o modelo perfeito. As Escrituras estão repletas de conselhos a este propósito (por exemplo: cf. Jt 8, 16; Pr 15, 33; 22, 4; Mq 6, 8; Sf 2, 3; Ef 4, 2; Fl 2, 3; Col 3, 12; I Pd 3, 8), e o próprio Divino Mestre recrimina a soberba arrogante do fariseu, estigmatizando-a em parábola, ao final da qual afirma: “o que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado” (Lc 18, 14).
Devido a uma compreensão errônea do que seja a verdadeira humildade, porém, alguns desvios se tornaram frequentes em nossos tempos, influenciando os gestos, as atitudes e até as vestimentas. Para exemplificar, tratemos sobre o modo de vestir-se adotado nestas últimas décadas.
Parece ser orgulhoso quem usa roupas de acordo com sua categoria, sobretudo quando muito limpas e bem passadas. A despretensão consistiria, então, em ser desalinhado, trajar-se com grande descuido, ter os cabelos desgrenhados, etc. Ora, São Tomás de Aquino[6] afirma que, muitas vezes, não é por virtude que as pessoas se vestem mal, e sim por desleixo.
Segundo ele, devemos aplicar cuidado e diligência em nossa apresentação pessoal. Ele cita a este propósito Santo Agostinho, quem diz: “Não somente no brilho e na pompa dos bens temporais pode haver jactância, mas também no lastimoso desalinho, o que é mais perigoso, porque, ocultando-se sob um manto de piedade, engana com a aparência de servir a Deus”.[7]
O grande escândalo: denunciar o mal
A humildade mal-entendida, levada a seus últimos extremos, desemboca no juízo deturpado de certos contemporâneos nossos que chegam a afirmar ser orgulhoso quem denuncia o mal. Ou, dito de outra maneira, o permissivismo moral ― que hoje alastrou-se por todos os povos e erigiu-se como lei absoluta ― só condena um único “escândalo”: delatar o mal.
Mais uma vez, o erro é desmentido pelo próprio Jesus. Ele não deixou de ser humilde quando acusou os fariseus: “Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai” (Jo 8, 44); nem quando, “dirigindo-Se, então, Jesus à multidão e aos seus discípulos” (Mt 23, 1), vituperou-os, com os apodos já mencionados: hipócritas, insensatos e cegos, sepulcros caiados, raça de víboras.
Com esta forma de proceder, poderia Jesus não escandalizar? Eis a grande lição que nos dão as premissas do Evangelho de hoje: sejamos humildes de verdade, sem deixar a santidade de vida e de costumes, ainda que esta atitude produza escândalo nos outros. Jamais devemos nos esquecer de nossa condição de filhos de Deus.
Extraído de: CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O Inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano: L.E.V./São Paulo: Lumen Sapientiae, 2014, v.III., p. 409-416.
[1] SÃO BEDA. Homiliæ Genuinæ. L.I, hom.XV. In purificatione Beatæ Mariæ: ML 94, 82.
[2] Cf. DONOSO CORTÉS, Juan. Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo. L.I, c.III, n.4-5. In: Obras Escogidas. Buenos Aires: Poblet, 1943, p.501-502.
[3] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.13, a.1, ad 1.
[4] PIO XI. Quas primas, n.12.
[5] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.46; q.13.
[6] Cf. Idem, II-II, q.169, a.1.
[7] SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini in monte. L.II, c.12, n.41. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1954, v.XII, p.935.
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