O povo judeu foi receptor de um ritual bastante peculiar para alcançar a misericórdia de Yahvé, através dos Sacrifícios Expiatórios.
Redação (23/03/2024 15:36, Gaudium Press) Faz parte da contingência do gênero humano o reconhecimento de suas limitações e fraquezas. De fato, quem nunca precisou admitir um erro? Quem nunca sentiu em si a falência das próprias forças em face de nosso estado de prova?
“Que é o homem para que seja puro? Pode ser justo o que nasce de mulher?” (Jó 15,14) ensinou-nos o íntegro Jó. Ou ainda, “quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar uma pedra” (Jo 8,7) – admoestou o Salvador à multidão desejosa de lapidar uma mulher surpreendida em adultério. Nessa mesma linha, o Rei e Profeta Davi é o personagem bíblico paradigmático: é mediante o Salmo 50 que ele canta o melhor resumo de sua vida: “Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniquidade. Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado. Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado. Só contra vós pequei, fiz o que é mau diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento. Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado. Não obstante, amais a sinceridade de coração” (Sl 50,3-8).
Viver na condição de homem significa, pois, necessitar constantemente do olhar beneplácito de Deus e de seu perdão; de implorar seu auxílio e sua misericórdia.
Novamente, se nos reportarmos aos costumes do Antigo Testamento – um tanto rudimentares, é verdade –, veremos que as aspirações dos homens reclamavam o perdão divino, pois o fraterno, em face das falências humanas, era muitas vezes olvidado…
Por essa e outras razões, após a edificação do Templo de Jerusalém, o centro da vida do Povo Eleito passou a gravitar em torno dessa mansão divina, para onde acorriam multidões de judeus suplicantes do perdão de Yahvé. Lá, faziam-no mediante um sacrifício expiatório.[1]
Origem e características
No que se refere a esta espécie de sacrifício expiatório, as Escrituras Sagradas indicam-nos dois tipos, embora não nos mostre claramente as diferenças entre ambos:
. O sacrifício pelo pecado (Hatta’t, חַטָּ֔א);
. O sacrifício de reparação ou pelo delito (’Asam, אָשֵֽׁמ).
O primeiro deles, o sacrifício pelo pecado, provém etimologicamente da raiz hebraica, Hatta’t, que “significa faltar, ser defeituoso”.[2] Neste cerimonial, as vítimas a serem oferecidas variavam de acordo com a posição social e/ou religiosa do ofertante.
Por exemplo, se o pecado a ser expiado tivesse sido cometido por um membro do povo, imolava-se um touro. Mas se o delito houvesse sido atentado pelo próprio Sumo Sacerdote, cuja culpa manchava também o povo inteiro – dado ser ele o mediador –, imolava-se também um touro.
No entanto, para a reparação da falta de um “príncipe” – chefes seculares de comunidades –, sacrificava-se um macho caprino; ou uma cabra ou ovelha, pelo pecado de um particular. Quanto aos mais pobres, estes podiam substituir as vítimas custosas por duas rolas ou duas pombas, uma das quais servia para o sacrifício e a outra, para o Holocausto. Podiam inclusive contentar-se com uma oferenda de farinha.[3]
Os Sacrifícios ’Asam – cujo vocábulo hebraico indica a ofensa cometida e o ato de reparação – possuem uma paridade de ritual com os Hatta’t, mas estavam prescritos unicamente para os casos particulares, pois distinguiam-se quanto ao elemento a ser ofertado: somente carneiros.[4]
Duas peculiaridades distinguiam os Hattá’t dos demais sacrifícios realizados entre os judeus: “A função do sangue e o uso das carnes da vítima”.[5] Quanto ao sangue, “se era oferecido o sacrifício pelo Sumo Sacerdote ou por todo o povo, havia três ritos sucessivos: depois de recolher o sangue, o oficiante entrava no Santo dos Santos e fazia a aspersão do sangue sete vezes diante do véu que ocultava o Santo dos Santos, em seguida, friccionava com o sangue os chifres do altar dos perfumes, que estava diante do véu; finalmente derramava o resto diante do altar dos holocaustos. Eram os únicos Sacrifícios de animais que levavam ao interior do Templo algo da vítima. Pelo pecado de algum chefe ou de algum particular atritava-se somente os chifres do altar dos Holocaustos e derramava-se o resto do sangue ao pé do altar; nestes dois Sacrifícios não se penetrava no Santo nada da vítima”.[6]
Contudo, em que se baseavam os judeus para tanto estimar o sangue das vítimas? Duas passagens bíblicas favorecem-nos uma compreensão: narra o livro do Êxodo que, quando Moisés, o homem de Deus, concluiu a proclamação dos dez mandamentos da Lei, ainda na presença de todo o povo reunido, tomou o sangue da vítima para aspergir com ele o povo: “Eis – disse ele – o sangue da aliança que o Senhor fez convosco, conforme tudo o que foi dito” (cf. Ex 24,8). Mais adiante, no Livro do Levítico, Yahvé instruiu: “A alma da carne está no sangue, e dei-vos esse sangue para o altar, a fim de que ele sirva de expiação pelas almas, porque é pela alma que o sangue expia” (cf. 17,11-12).
Ou seja, é através do sangue que se expia os pecados e se reata a aliança com Deus. E tal realidade, o povo eleito a entendia bastante bem.[7]
No que se refere ao consumo das partes do animal imolado, o Livro do Levítico prescreve aos sacerdotes uma norma um tanto curiosa, pedindo que o façam com toda a diligência e com toda a devoção, pois “essa é uma coisa santíssima” (Lv 6,22).
Ora, como pode um animal (que carrega em si o pecado) ser tratado e estimado desta maneira? Não haveria aqui uma contradição? De nenhum modo. “A vítima é agradável a Deus que, em consideração a esta oferenda, apaga o pecado”.[8] E ainda, olhando para os séculos posteriores aos da instituição destes sacrifícios, veremos que São Paulo interpretará isso muito bem: “[Cristo], que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus” (2Cor 5,21).
Desse modo, bem podemos ver nesses sacrifícios expiatórios o prenúncio e o símbolo do sacrifício exemplar e inigualável ao qual Cristo foi submetido pelo Pai, ao assumir sobre Si nossas culpas, derramando por nós todo o seu preciosíssimo sangue.
Por João Pedro Serafim
[1] Para acesso aos artigos anteriores, sobre os Sacrifícios do Antigo Testamento: https://gaudiumpress.org/content/os-sacrificios-do-antigo-testamento-o-holocausto/; https://gaudiumpress.org/content/os-sacrificios-do-antigo-testamento-ii-os-sacrificios-pacificos/
[2] COLUNGA, Alberto; GARCIA CORDERO, Maximiliano. Biblia comentada: Pentateuco. Madrid: B. A. C., 1960, p. 639. (Trad. pessoal).
[3] Cf. DE VAUX, Roland. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona: Herder, 1976, p. 532. (Trad. pessoal).
[4] Cf. ibid., p. 534.
[5] Cf. ibid., p. 533.
[6] Ibid.
[7] Quanto à repartição das carnes, “o ofertante, reconhecido como culpável, não recebe nada, e tudo passa aos sacerdotes. E quando o Sacrifício é oferecido pelo pecado da comunidade ou pelo pecado do Sumo Sacerdote que representa a comunidade, nem sequer os sacerdotes podiam comer nada da vítima; esta era levada para fora do santuário, ao depósito das cinzas” (cf. DE VAUX, Roland. Op. cit., p. 533).
[8] Ibid.
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